sábado, 14 de janeiro de 2012

A Escola da Ponte

Entrevista 
Era uma escola muito engraçada, não tinha aulas…
A música de Vinicius de Moraes bem poderia servir como paródia para a singular Escola da Ponte, em Portugal. Com a diferença de que, neste colégio, em vez de não haver nada, criou-se muito


Uma escola sem salas de aula, sem aulas, sem divisão por série e sem provas. Uma escola onde alunos de 5 a 19 anos aprendem juntos, em pequenos ou grandes grupos, e decidem juntos, em assembléia, as regras que os regerão e como resolverão os problemas que os afligem. Uma escola onde uns ensinam aos outros, independentemente de idade. Uma escola na qual todos ouvem quando alguém está falando e levantam a mão para pedir a palavra. Uma escola em que os alunos não sabem o que é colar. Parece ficção? Pois bem vindos à Escola da Ponte.
A Escola da Ponte é pública e fica ao norte de Portugal, a cerca de 30 km da cidade do Porto, em uma vila chamada Vila das Aves. A partir de 1976, seu projeto começou a ser repensado e uma nova realidade foi se desenhando. Não foram poucas as dificuldades nem as brigas que José Pacheco, seu diretor, e o corpo docente, junto com os pais, tiveram de enfrentar para bancar suas idéias. Mas, juntos, eles venceram. Trinta anos depois de iniciada essa revolução, a escola tem inúmeros resultados para mostrar. E uma realidade totalmente diferente – e para muitos bem melhor – que a da maioria dos colégios.
“Nós aprendemos assim: formamos pequenos grupos com interesse comum por um assunto, reunimo-nos com uma professora e ela, conosco, estabelece um programa de trabalho de 15 dias, dando-nos orientação sobre o que deveremos pesquisar e os locais onde pesquisar. Usamos muito os recursos da Internet. Ao final dos 15 dias, nos reunimos de novo e avaliamos o que aprendemos. Se o que aprendemos foi adequado, aquele grupo se dissolve e forma-se um outro para estudar outro assunto.” Foi assim que uma menina de 10 anos explicou a rotina de aprendizado ao escritor brasileiro Rubem Alves, quando ele foi visitar a Escola da Ponte. Rubem ficou tão maravilhado que escreveu várias crônicas sobre o local e acabou publicando um livro intitulado: “A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir (Papirus Editora, Campinas, SP, 2001).
Quem caminha pela escola vê, além de uma sala enorme, sem divisões, cheia da mesinhas baixas onde as crianças trabalham nos seus projetos, sem correr nem falar em voz alta, alguns painéis interessantes. Um deles diz: ‘Tenho necessidade de ajuda em...’ E o outro: ‘Posso ajudar em...’ Qualquer criança que tenha dificuldades em um assunto coloca ali o assunto e o seu nome. Um outro colega, vendo o pedido, vai ajudá-la. E qualquer criança que se ache em condições de ajudar em algum assunto, coloca ali o assunto que domina e o seu nome. Assim acontece uma rede de ensino e aprendizado. Há também uma caixa, chamada “Caixinha de Segredos”, na qual os alunos podem depositar um papel com o que quiserem escrever.
Você saiu da Escola da Ponte. O que está fazendo agora?
Eu me aposentei oficialmente há um ano, mas continuo a ir lá. Passo metade do ano em Portugal e metade no Brasil. Aqui dou consultoria para 34 escolas que estão em processo de mudança. Não vou citar quis porque, nos primeiros anos, esse tipo de projeto precisa ser clandestino. Caso tomem visibilidade social, acabam sendo boicotados. A resistência a mudanças é muito forte, Mas o Brasil tem um potencial tremendo. Em cinco a dez anos, teremos uma grande surpresa. O Brasil está fazendo uma revolução silenciosa.

Escolas brasileiras estão seguindo o modelo da Escola da Ponte?
Não há um modelo a ser seguido. Não se trata de aplicar fórmulas, copiar um modelo. Mas há escolas dispostas a mudar, a se reformular, a repensar a sua prática. São essas escolas que eu estou ajudando.

Há pouco, aqui no Brasil, se deu uma grande discussão sobre qual é o melhor método para alfabetizar as crianças. O que você acha?
Não faz sentido dizer que o método fônico é melhor que o silábico. Essa é uma discussão estéril. E é uma bobagem ainda maior dizer que há um método construtivista, ao qual o método fônico pode se contrapor. O construtivismo não é um método, não se reduz a práticas de alfabetização. O que Emília Ferreiro provou é que cada criança formula hipóteses individuais a respeito da escrita. Para que essas hipóteses sejam respeitadas, é preciso criar um letramento que atenda as diferenças de cada aluno. O melhor método é o que resulta com cada criança. Cada um tem um modo diferente de aprender e o professor precisa ter competência para dar a cada um o que precisa. Para uns pode funcionar melhor o método fônico, para outros, outro— e há muitos. Para conseguirmos ensinar a ler e escrever de modo mais eficiente seria necessário ter um professor especialista em alfabetização nas escolas. A Escolas têm um único professor de primeira a quarta série e depois se admiram quando 30% não aprenderam a ler. Um único professor não dá conta do problema.

Como é que se dá a entrada de novos alunos na Escola da Ponte? Como eles se adaptam a um sistema tão diferente?
Nós temos três núcleos. Iniciação, consolidação e aprofundamento. O aluno passará por esses três estágios. Alguém que está no primeiro momento, o da iniciação (e isso não tem nada a ver com a idade), só passará para a consolidação quando tiver conhecimentos indispensáveis de língua, matemática e também outros conhecimentos que tem a ver com o desenvolvimento sócio-emocional e moral, como saber trabalhar em grupo, funcionar em uma assembléia, saber fazer pesquisa, etc. Cada criança tem um professor tutor, que acompanha seu desenvolvimento. Nossa tarefa aqui é formar pessoas com autonomia, responsabilidade, capazes de gerenciar seus estudos. Mas muitos alunos, quando entram, confundem autonomia e liberdade com liberalidade. Eles vão sendo acompanhados, há avaliações de atitute, vai-se construindo um caminho para a autonomia.

Como é que se definem os temas que as crianças vão trabalhar? De onde surgem? Estão baseados em um currículo ou programa?
Uma criança, se deixarem, faz perguntas. É só quando uma escola anula o pro que que elas deixam de perguntar. Então, elas perguntam: “Como faço para tirar os carrapatos dos meus pés? Meu pai, sempre que o faz, arranca um pouco de pele e dói”; ou então: “ Por que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão” ou ainda “Se as árvores respiram pelas folhas, como fazem para respirar quando as folhas caem?”. Esses são todos exemplos de perguntas que surgiram na escola e deram origem a diferentes projetos. Alguns bem grandes, que envolveram vários grupos de crianças.

E como vocês conseguem cumprir o programa, já que são uma escola pública e deve haver diretrizes determinadas pelo Ministério da Educação?
Nós cumprimos o programa integralmente, até mais e melhor que outras escolas, que seguem uma cartilha, algo bem mais restrito que um programa. Quando as crianças começaram a estudar a invasão do Afeganistão, por exemplo, elas visitaram muitos sites em inglês.  Se depararam com vários adjetivos. Então, foram estudar adjetivos em inglês. Nesse momento, cumpriram o programa. E olha que havia nesse grupo crianças de 7 anos, que, na escola tradicional, só veriam esse conteúdo bem mais adiante. Uma delas me disse assim: “Quando estudamos os adjetivos vimos que “bad” (mau, em inglês) se pode escrever com B de Bin Laden e com B de Busch”. Então veja, eles aprenderam não só os adjetivos, como também fizerem juízos de valor.

Como é que as crianças da Escola da Ponte se portam depois, ao sair, em um mundo em que nem tudo é democrático quanto na escola, um mundo muito competitivo?
Olha, não tenho dados consolidados, estamos até acompanhando alguns ex-alunos. Mas posso falar de um deles, André, hoje com 30 anos, um excelente professor de matemática, que passou dos 6 aos 10 anos na Escola da Ponte. Ele por acaso é meu filho. E sempre se deu muito bem. O governo, em Portugal, também instituiu um provão, para avaliar o desempenho das crianças da escola pública. Os alunos da Escola da Ponte alcançam sempre resultados acima da média. Isso é ótimo, porque vai calando algumas pessoas que combatem o projeto. Mostrando que dá resultados.

E no que diz respeito a outros aspectos, não só o das competências formais, do conhecimento? Como é que eles lidam com um mundo que não é tão claro, em que muitas vezes as questões não são debatidas de frente e é preciso ler nas entrelinhas?
Olha, alguns sofrem muito com deslealdade, com traições, mas todos se adaptam muito bem. Teve um exemplo que me deixou muito perplexo. Nesse provão, as questões são de múltipla escolha. Ou seja, normalmente, quando alguém não sabe ou não tem total certeza, o normal é que chute uma opção. Assim, pelo menos, a pessoa tem uma chance em quatro de acertar. No primeiro ano em que aplicamos o provão, os alunos da Escola da Ponte, quando não sabiam uma questão, a deixavam em branco. Eu perguntei a alguns: “Por que você não respondeu?” “Porque não sabia”, era a resposta. “E porque você não escolheu uma resposta, talvez tivesse chance de acertar?” “Para que, se não sei?”.

Que tipo de indivíduos a Escola da Ponte forma?
Olha, não temos dados estatísticos, mas muitos alunos são ótimos empreendedores, montam indústrias, empresas. Também temos muitos ligados às artes, pintores, bailarinos, atores.

Lembra um pouco a Escola Waldorf...
Sim, nós temos bastante influência de Rudolf Steiner. Mas também de vários outros. Na verdade, a gente não inventou nada. A teoria está toda lá. O que nós fizemos foi aplicá-la, criar uma prática.

Como funcionam as assembléias?
Nós não educamos para a cidadania. Educamos na cidadania. O respeito pelo outro, a capacidade de pedir a palavra, de saber esperar e saber ouvir são realidade aqui, cotidiano. A assembléia acontece semanalmente e discute várias questões. Quando há problemas graves, temos também um tribunal. Duas crianças são indicadas pelos professores e outras duas, pelos alunos. O veredito delas é definitivo. Uma vez, numa assembléia, nós havíamos recebido alguns visitantes. A uma certa altura, eles começaram a falar entre si, a cochichar. Quando percebeu, a menina que presidia a assembléia, imediatamente parou de falar. Aos poucos, todos notaram a situação. Então, uma a uma, as 230 crianças que estavam na sala começaram a levantar o braço. Aí, os visitantes pararam de falar. Quando o total silêncio foi retomado, a menina voltou a falar, e os outros 230 baixaram os braços. Se queremos ensinar o respeito, temos de respeitar.

A escola tradicional está fadada ao fracasso? Não tem mais valor?
Eu fui professor durante muitos anos de escolas tradicionais e acho que bom e mau ensino podem acontecer com ou sem salas de aula. Eu respeito as escolas tradicionais, é sobre o tradicional que se cria o novo, não sobre o vazio. Só estou cansado de tantas receitas e respostas. Acho que precisamos de mais questionamento, mais inquietude. O problema das escolas tradicionais é que você vai lá, prepara a aula, dá a aula, depois aplica prova e aí vê  que 20, 30% dos alunos não aprenderam. Então você acha que essas crianças têm problemas de aprendizagem. Mas olha, muitos dos problemas são de “ensinagem”. É preciso que o aluno queira aprender. A pergunta é: será que essas escolas estão em condições de dar o que eles querem aprender?

Como a Escola da Ponte lida com a diversidade? Hoje no Brasil se fala muito em inclusão, em aceitar crianças com necessidades especiais.
A Escola da Ponte é uma escola pública, que recebe filhos de alcoólatras, crianças órfãs, crianças com Síndrome de Down, crianças que não foram aceitas em nenhuma outra escola, que bateram em professores... Você acha que em Portugal isso não acontece? Pois em Portugal o professor está tão sozinho quanto no Brasil. Teve um menino que deixou um professor em coma ao dar-lhe um pontapé na cabeça. A diferença foi que, quando ele chegou à Escola da Ponte viu que ali, o professor não estava sozinho. Havia uma equipe, uma comunidade. Nossa escola não faz tudo igual para todos. Porque isso não é incluir nem gerar igualdade. Se a escola não se re-estruturar, não há inclusão. Cada indivíduo é diferente, tem um ritmo, uma cultura, traz um repertório. Esse menino, obviamente, não iria participar de uma assembléia na sua primeira semana. Talvez não tenha nem condições de decidir o que quer aprender, de que grupo vai participar. É feito um trabalho individual, aos poucos. É porque cada ser é único que na Escola da Ponte não há avaliação tradicional, uma mesma prova para todos. Cada aluno, quando sente que aprendeu, quando se sente capaz, é avaliado.

Como se faz para formar um professor diferente?
É muito difícil. O que posso dizer é que é necessário partir de uma pessoa. Onde não há uma pessoa não pode-se colocar um professor. É preciso fazê-lo sentir-se seguro, apoiá-lo e fazer com que, aos poucos, questione sua prática e vá se re-elaborando.

Hoje quem visita a escola vê um espaço bonito, computadores nas salas. Foi sempre assim?
Imagina! A escola funcionava do lado de uma lixeira, o banheiro era fora e não tinha porta. Era preciso ir em vários e fazer uma barreira humana. Além do mais, o projeto foi extremamente combatido. Uma das perguntas que as crianças fizerem, que resultou em um grande projeto foi: “Por que os peixes do nosso rio estão morrendo?”. Quando foram investigar, fazer entrevistas, pegar amostras da água, etc, descobriram que algumas empresas estavam jogando dejetos no rio. E as crianças, junto com a escola, denunciaram o fato. Foi um inferno. Chegaram a mandar jagunços. Mataram os animais que criávamos. O projeto da escola é um projeto político. Quando você cria algo novo, além de boas intenções, de propósito, e de estratégia, é preciso ter resistência. Eu fui prefeito da minha cidade durante três anos. Só então acabamos com o problema da água. Nós somos fundamentalistas pedagógicos! E olha, 30 anos depois, ainda é o começo.

No início, vocês juntaram as salas, derrubaram paredes. Existe uma arquitetura que propicia a educação?
Sim, existe, mas nós não a temos. O ideal seria integrar a escola à comunidade. Quando se fala em construir um colégio, sempre se pensa em fazer uma grande biblioteca. Mas para que fazer outra se na sua comunidade houver uma? E o mesmo com o ginásio, e assim vai. Não faz diferença o prédio. O lugar de aprender pode ser qualquer lugar. O lugar de aprender é o lugar de estar.

Como funciona um dispositivo que vocês usam chamado “Caixinha de segredos” ?
É uma caixa que existe na escola, onde cada um pode depositar o recado que quiser. Ali são colocados pedidos, desabafos, recados amorosos, críticas. Podem ser anônimas ou assinadas. Há coisas como: “ Professor fulano, ontem meu pai bateu na minha irmã, a chamou de vadia e ela falou que vai se matar. Não sei o que fazer”. Nesses casos, a pessoa que gerencia a caixinha dá o recado ao professor, que vai imediatamente ter com o aluno. Também apareceu um muito engraçado, dizia assim: “Eu acho mal que os meninos vão ao banheiro, defequem (ele usou essa palavra, defequem) e deixem o vaso todo cagado!”.

Hoje fala-se muito em novas tecnologias, em ensino à distância. É moda colocar computadores nas escolas. O senhor acha que é possível haver aprendizado sem a presença do outro? 
A Ponte foi uma das primeiras escolas a introduzir novas tecnologias. Um banco ia trocar o seu maquinário e nós recebemos uma doação de vários computadores, quando ainda nem havia Internet. Mas logo verificamos uma tendência skineriana, aquela coisa do monstrinho que fica enfurnado no computador, sem olhar de lado. Então, não dá para fazer do computador a vaca sagrada, colocá-lo em um altar. Ele é uma ótima ferramenta, mas não há sentido em ir para a escola para ficar sentado em frente ao computador.

Do que os pais têm mais medo quando colocam um filho na Escola da Ponte? 
Boa pergunta, eu não sei. Eles não evidenciam seus medos. À Escola da Ponte só vai quem quer e os pais compram o projeto, eles o defendem. Acho que o maior medo é dos que estão fora e querem destruir o projeto. Eu, particularmente, tenho medo dos que entram e querem destruir o projeto por dentro. Sabe o oitavo passageiro? Tem gente que faz isso, nunca entendi. Por sorte, são poucos e acabam saindo.



Fonte: http://www.obratecnologia.com.br/obra/portfolio/guia_educacao/entrevista.shtml

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