A Escola da Ponte
Abaixo um muito agradável e riquíssimo texto do escritor, educador, psicanalista e professor emérito da UNICAMP, Rubem Alves. Uma característica marcante desse especial brasileiro é que suas palavras falam diretamente com nossa alma.
As crônicas aqui transcritas foram originalmente publicadas no
jornal Correio Popular, de Campinas, SP (respectivamente em 14/5, 21/5,
28/5, 4/6, 11/6 e 18/6 do ano 2000) mas estão hoje publicadas no livro A
escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir (Papirus
Editora, Campinas, SP, 2001 e Edições Asa, Porto, 2001). A primeira
crônica, que tem o título de "Quero uma Escola Retrógrada...", serve como
prefácio para as cinco outras, que tratam da Escola da Ponte, de Vila Nova
de Famalicão, Portugal. Seu site é http://www.rubemalves.com.br.
jornal Correio Popular, de Campinas, SP (respectivamente em 14/5, 21/5,
28/5, 4/6, 11/6 e 18/6 do ano 2000) mas estão hoje publicadas no livro A
escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir (Papirus
Editora, Campinas, SP, 2001 e Edições Asa, Porto, 2001). A primeira
crônica, que tem o título de "Quero uma Escola Retrógrada...", serve como
prefácio para as cinco outras, que tratam da Escola da Ponte, de Vila Nova
de Famalicão, Portugal. Seu site é http://www.rubemalves.com.br.
Em princípio a texto a seguir é dirigido aos educadores. Mas quem não é (ou precisa ser) educador? Os bons pais não são educadores? Certamente, sim. Os bons líderes não são educadores. Certamente, sim.
São várias páginas a serem “degustadas”!!! Mas com certeza uma lição inesquecível a quem se dedicar à leitura completa.
Uma observação: à época em o escritor Rubem Alves escreveu o texto abaixo, o educador José Pacheco (criador da Escola da Ponte) residia em Portugal. No entanto, em 2008 passou a residir no Brasil prestando consultoria às escolas que queiram abraçar um novo paradigma no campo educacional.
Vamos ao texto:
QUERO UMA ESCOLA RETRÓGRADA...
Rubem Alves
Como são produzidos liquidificadores, máquinas de lavar roupa,
computadores, automóveis? São produzidos numa "linha de montagem". De maneira simplificada: uma esteira que se movimenta. Ao lado dela estão operários. Cada operário tem uma função específica. O processo se inicia com uma "peça original" à qual, à medida que esteira corre, os operários vão acrescentando as partes que irão compor o objeto final. Nenhum operário faz o objeto, individualmente. Cada operário faz uma única operação: juntar, soldar, aparafusar, cortar, testar. O resultado da linha de montagem é a produção rápida e controlada de objetos iguais. A igualdade dos objetos finais é a prova da qualidade do processo. O que não for igual, isso é, que apresentar alguma peculiaridade que o distinga do objeto ideal, é eliminado. A função da "peça original", como se vê, é a de ser simples suporte para as outras peças que lhe vão sendo acrescentadas. Ao final do processo a "peça original" praticamente desapareceu. No seu lugar está o objeto que vale pela sua função dentro do processo econômico.
computadores, automóveis? São produzidos numa "linha de montagem". De maneira simplificada: uma esteira que se movimenta. Ao lado dela estão operários. Cada operário tem uma função específica. O processo se inicia com uma "peça original" à qual, à medida que esteira corre, os operários vão acrescentando as partes que irão compor o objeto final. Nenhum operário faz o objeto, individualmente. Cada operário faz uma única operação: juntar, soldar, aparafusar, cortar, testar. O resultado da linha de montagem é a produção rápida e controlada de objetos iguais. A igualdade dos objetos finais é a prova da qualidade do processo. O que não for igual, isso é, que apresentar alguma peculiaridade que o distinga do objeto ideal, é eliminado. A função da "peça original", como se vê, é a de ser simples suporte para as outras peças que lhe vão sendo acrescentadas. Ao final do processo a "peça original" praticamente desapareceu. No seu lugar está o objeto que vale pela sua função dentro do processo econômico.
Nossas escolas são construídas segundo o modelo das linhas de montagem. Escolas são fábricas organizadas para a produção de unidades bio-psicológicas móveis portadoras de conhecimentos e habilidades. Esses conhecimentos e habilidades são definidos exteriormente por agências governamentais a que se conferiu autoridade para isso. Os modelos estabelecidos por tais agências são obrigatórios, e têm a força de leis. Unidades bio-psicológicas móveis que, ao final do processo, não estejam de acordo com tais modelos são descartadas. É a sua igualdade que atesta a qualidade do processo. Não havendo passado o teste de qualidade-igualdade, elas não recebem os certificados de excelência ISO-12.000, vulgarmente denominados diplomas. As unidades bio-psicológicas móveis são aquilo que vulgarmente recebe o nome de "alunos".
As linhas de montagem denominadas escolas se organizam segundo coordenadas espaciais e temporais. As coordenadas espaciais se denominam "salas de aula". As coordenadas temporais se denominam "anos" ou "séries". Dentro dessas unidades espaço-tempo os professores realizam o processo técnico-científico de acrescentar sobre os alunos os saberes-habilidades que, juntos, irão compor o objeto final. Depois de passar por esse processo de acréscimos sucessivos - à semelhança do que acontece com os "objetos originais" na linha de montagem da fábrica- o objeto original que entrou na linha de montagem chamada escola ( naquele momento ele chamava "criança") perdeu totalmente a visibilidade e se revela, então, como um simples suporte para os saberes-habilidades que a ele foram acrescentados durante o processo. A criança está, finalmente formada, isso é, transformada num produto igual a milhares de outros. ISO-12.000: está formada, isto é, de acordo com a forma. É mercadoria espiritual que pode entrar no mercado de trabalho. Aí o meu companheiro de direção contrária me perguntou se não seria possível mudar as coisas. Abandonar a linha de montagem de fábrica como modelo para a escola e, andando mais para trás, tomar o modelo medieval da oficina do artesão como modelo para a escola. O mestre-artesão não determinava como deveria ser o objeto a ser produzido pelo aprendiz. Os aprendizes, todos juntos, iam fazendo cada um a sua coisa. Eles não tinham de reproduzir um objeto ideal escolhido pelo mestre. O mestre estava a serviço dos aprendizes e não os aprendizes a serviço dos mestres. O mestre ficava andando pela oficina, dando uma sugestão aqui, outra ali, mostrando o que não ficara bem, mostrando o que fazer para ficar melhor (modelo maravilhoso de "avaliação"). Trabalho duro, fazer e refazer. Mas os aprendizes trabalham sem que seja preciso que alguém lhes diga que devem trabalhar. Trabalham com concentração e alegria, inteligência e emoção de mãos dadas. Isso sempre acontece quando se está tentando produzir o próprio rosto (e não o rosto de um outro). Ao final, terminado o trabalho, o aprendiz sorri feliz, admirando o objeto produzido. São extraordinários os esforços que estão sendo feitos para fazer com que nossas linhas de montagem chamadas escolas tão boas quanto as japonesas. Mas o que eu gostaria mesmo é de acabar com elas. Sonho com uma escola retrógrada, artesanal... Impossível? Eu também pensava. Mas fui a Portugal e lá encontrei a escola com que sempre sonhara: a "Escola da Ponte". Me encantei vendo o rosto e o trabalho dos alunos: havia disciplina, concentração, alegria e eficiência.
A Escola da Ponte - 1
Tudo começou acidentalmente num lugar de Portugal cujo nome eu nunca ouvira: Vila Nova de Famalicão. Posteriormente me ensinaram que era a cidade onde vivera Camilo Castelo Branco, romancista gigante de vida trágica. Menino ainda, li o seu livro "Amor de Perdição", evidentemente sem nada compreender. Li porque não tinha outra coisa para fazer e o livro
estava lá, na estante do meu pai. Camilo se apaixonou por uma mulher casada
que, por sua vez se apaixonou por ele, e os dois fugiram para viver um amor
louco e criminoso. Naqueles tempos do século passado adultério era crime, o
marido traído pôs a polícia ao encalço do sedutor que foi preso e passou
anos na prisão - sem que o seu amor diminuísse. Imagino que o título do seu
livro "Amor de Perdição" tenha sido inspirado por sua própria desgraça. Mas
o marido finalmente morreu e os dois apaixonados viveram o resto de suas
vidas na casa que pertencera ao marido. Velho, Camilo Castelo Branco ficou
cego e foi abandonado pelos amigos. De tristeza, pôs um fim à sua vida.
estava lá, na estante do meu pai. Camilo se apaixonou por uma mulher casada
que, por sua vez se apaixonou por ele, e os dois fugiram para viver um amor
louco e criminoso. Naqueles tempos do século passado adultério era crime, o
marido traído pôs a polícia ao encalço do sedutor que foi preso e passou
anos na prisão - sem que o seu amor diminuísse. Imagino que o título do seu
livro "Amor de Perdição" tenha sido inspirado por sua própria desgraça. Mas
o marido finalmente morreu e os dois apaixonados viveram o resto de suas
vidas na casa que pertencera ao marido. Velho, Camilo Castelo Branco ficou
cego e foi abandonado pelos amigos. De tristeza, pôs um fim à sua vida.
A casa é hoje um museu. Existe ali um "Centro de Formação Camilo Castelo Branco", dirigido pelo professor Ademar Santos. Pois há alguns anos atrás, por obra de uma brasileira que lá vive, chegou às mãos do professor Ademar um livrinho meu, velho e surrado, "Estórias de quem gosta de ensinar". O Ademar sentiu logo que éramos conspiradores de idéias, passou a caçar o que eu escrevia, descobrindo-me finalmente nas crônicas que publico aqui no Correio Popular aos domingos. Passamos a nos corresponder via e-mail e o "Centro de Formação Camilo Castelo Branco" acabou por convidar-me a lá passar uma semana. E foi o que fiz de 2 a 7 de maio. Eu já havia estado anteriormente em Portugal como turista, tendo conhecido monumentos, restaurantes e cidades. Dessa vez foi diferente. Conheci pessoas. Conversei com elas. Tive a recepção mais generosa e inteligente de toda a minha vida. Recepções generosas - isso é fácil: passeios, jantares, presentes, homenagens. Mas eu insisto no "inteligente". Cada ocasião era uma aprendizagem que me assombrava. Dentre elas a "Escola da Ponte". Pedi que o Ademar me desse explicações preliminares, antes da visita. Ele se recusou. Disse-me que explicações seriam inúteis.
Eu teria de ver e experimentar.
A "Escola da Ponte" é dirigida por José Pacheco, um educador de voz mansa e poucas palavras. Imaginei que ele seria meu guia e explicador. Ao invés disso ele chamou uma aluna de uns 10 anos que passava e disse: "Será que tu poderias mostras e explicar a nossa escola a este visitante?" Ela acenou que sim com um sorriso e passou a me guiar. Antes de entrar no lugar onde as crianças estavam ela parou para me dar a primeira explicação que tinha por objetivo, imagino, amenizar a surpresa. Aqui, quando a gente vai a uma escola, sabe o que vai encontrar: salas de aulas, em cada sala um professor, o professor ensinando, explicando a matéria prevista nos programas oficiais, as crianças aprendendo. A intervalos regulares soa uma campainha - sabe-se então que vai haver uma mudança - muda-se de matéria, freqüentemente muda-se de professor, pois há professores de matemática, de geografia, de ciências, etc., cada um ensinando a disciplina de sua especialidade. Já falei sobre isso na crônica passada: as linhas de montagem.
É preciso imaginar o delicioso "portuguesh" que se fala em Portugal para sentir a música segura e tranqüila da fala da menina. "Nósh não têmosh, como nas outrash escolash (daqui para frente escreverei do jeito normal...)
salas de aulas. Não temos classes separadas, 1º ano, 2º ano, 3º ano...
Também não temos aulas, em que um professor ensina a matéria. Aprendemos
assim: formamos pequenos grupos com interesse comum por um assunto,
reunimo-nos com uma professora e ela, conosco, estabelece um programa de
trabalho de 15 dias, dando-nos orientação sobre o que deveremos pesquisar e
os locais onde pesquisar. Usamos muito os recursos da Internet. Ao final
dos 15 dias nos reunimos de novo e avaliamos o que aprendemos. Se o que
aprendemos foi adequado, aquele grupo se dissolve, forma-se um outro para
estudar outro assunto."
Ditas essas palavras ela abriu a porta e, ao entrar, o que vi me causou
espanto. Era uma sala enorme, enorme mesmo, sem divisões, cheia da mesinhas
baixas, próprias para as crianças. As crianças trabalhavam nos seus
projetos, cada uma de uma forma. Moviam-se algumas pela sala, na maior
ordem, tranqüilamente. Ninguém corria. Ninguém falava em voz alta. Em
lugares assim normalmente se ouve um zumbido, parecido com o zumbido de
abelhas. Nem isso se ouvia. Notei, entre as crianças, algumas com síndrome
de Down que também trabalhavam. As professoras estavam assentadas com as crianças, em algumas mesas, e se moviam quando necessário. Nenhum pedido de silêncio. Nenhum pedido de atenção. Não era necessário.
À esquerda da porta de entrada havia frases escritas com letras grandes,
afixadas na parede. A menina explicou: "Aprendemos a ler lendo frases
inteiras". Lembrei-me que foi assim que eu aprendi a ler. Minha primeira
cartilha se chamava "O Livro de Lili". Na primeira página havia o desenho
de uma menininha com o seguinte texto, que nunca esqueci: "Olhem para mim./ Eu me chamo Lili. /Eu comi muito doce. / Vocês gostam de doce?/Eu
gosto tanto de doce!" Imaginei que a diferença, talvez, fosse que o texto
do "Livro de Lili" tinha sido escrito por uma pessoa no seu escritório. E
que as frases que se encontravam escritas na parede da "Escola da Ponte"
eram frases propostas pelas próprias crianças, frases que diziam o que elas
estavam vivendo. Aprendiam, assim, que a escrita serve para dizer a vida
que cada um vive. Pensei que é assim que as crianças aprendem a falar. Elas
aprendem palavras inteiras, pois somente palavras inteiras fazem sentido.
Elas não aprendem os sons para depois juntar os sons em palavras.
"Mas é importante saber as letras na ordem certa", ela continuou, "porque é
assim que se aprende a ordem alfabética, necessária para o uso dos
dicionários". (Ela falava assim mesmo, não é invenção minha...)
Notei, numa mesa ao lado, uma menina que escrevia e consultava um
dicionário. Agachei-me para conversar com ela. "Você está procurando no
dicionário uma palavra que você não sabe?" - perguntei. "Não, eu sei o
sentido da palavra. Mas estou a escrever um texto para os miúdos e usei uma
palavra que, penso, eles não conhecem. Como eles ainda não sabem a ordem alfabética e não podem consultar o dicionário, estou a escrever um pequeno dicionário ao pé da página do meu texto para que eles o compreendam."
salas de aulas. Não temos classes separadas, 1º ano, 2º ano, 3º ano...
Também não temos aulas, em que um professor ensina a matéria. Aprendemos
assim: formamos pequenos grupos com interesse comum por um assunto,
reunimo-nos com uma professora e ela, conosco, estabelece um programa de
trabalho de 15 dias, dando-nos orientação sobre o que deveremos pesquisar e
os locais onde pesquisar. Usamos muito os recursos da Internet. Ao final
dos 15 dias nos reunimos de novo e avaliamos o que aprendemos. Se o que
aprendemos foi adequado, aquele grupo se dissolve, forma-se um outro para
estudar outro assunto."
Ditas essas palavras ela abriu a porta e, ao entrar, o que vi me causou
espanto. Era uma sala enorme, enorme mesmo, sem divisões, cheia da mesinhas
baixas, próprias para as crianças. As crianças trabalhavam nos seus
projetos, cada uma de uma forma. Moviam-se algumas pela sala, na maior
ordem, tranqüilamente. Ninguém corria. Ninguém falava em voz alta. Em
lugares assim normalmente se ouve um zumbido, parecido com o zumbido de
abelhas. Nem isso se ouvia. Notei, entre as crianças, algumas com síndrome
de Down que também trabalhavam. As professoras estavam assentadas com as crianças, em algumas mesas, e se moviam quando necessário. Nenhum pedido de silêncio. Nenhum pedido de atenção. Não era necessário.
À esquerda da porta de entrada havia frases escritas com letras grandes,
afixadas na parede. A menina explicou: "Aprendemos a ler lendo frases
inteiras". Lembrei-me que foi assim que eu aprendi a ler. Minha primeira
cartilha se chamava "O Livro de Lili". Na primeira página havia o desenho
de uma menininha com o seguinte texto, que nunca esqueci: "Olhem para mim./ Eu me chamo Lili. /Eu comi muito doce. / Vocês gostam de doce?/Eu
gosto tanto de doce!" Imaginei que a diferença, talvez, fosse que o texto
do "Livro de Lili" tinha sido escrito por uma pessoa no seu escritório. E
que as frases que se encontravam escritas na parede da "Escola da Ponte"
eram frases propostas pelas próprias crianças, frases que diziam o que elas
estavam vivendo. Aprendiam, assim, que a escrita serve para dizer a vida
que cada um vive. Pensei que é assim que as crianças aprendem a falar. Elas
aprendem palavras inteiras, pois somente palavras inteiras fazem sentido.
Elas não aprendem os sons para depois juntar os sons em palavras.
"Mas é importante saber as letras na ordem certa", ela continuou, "porque é
assim que se aprende a ordem alfabética, necessária para o uso dos
dicionários". (Ela falava assim mesmo, não é invenção minha...)
Notei, numa mesa ao lado, uma menina que escrevia e consultava um
dicionário. Agachei-me para conversar com ela. "Você está procurando no
dicionário uma palavra que você não sabe?" - perguntei. "Não, eu sei o
sentido da palavra. Mas estou a escrever um texto para os miúdos e usei uma
palavra que, penso, eles não conhecem. Como eles ainda não sabem a ordem alfabética e não podem consultar o dicionário, estou a escrever um pequeno dicionário ao pé da página do meu texto para que eles o compreendam."
"Estou a escrever um texto para os miúdos" - foi o que ela disse. Na
"Escola da Ponte" é assim. As crianças que sabem ensinam as crianças que
não sabem. Isso não é exceção. É a rotina do dia a dia. A aprendizagem e o
ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade.
"Escola da Ponte" é assim. As crianças que sabem ensinam as crianças que
não sabem. Isso não é exceção. É a rotina do dia a dia. A aprendizagem e o
ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade.
Mais que aprender saberes, as crianças estão a aprender valores. A ética perpassa silenciosamente, sem explicações, as relações naquela sala imensa. Na outra parede encontrei dois quadros de avisos. Num deles estava afixada a frase: " Tenho necessidade de ajuda em...". E, no outro, a frase: "Posso ajudar em..." Qualquer criança que esteja tendo dificuldades em qualquer assunto coloca ali o assunto em que está tendo dificuldades e o seu nome. Um outro colega, vendo o pedido, vai ajudá-la. E qualquer criança que se
ache em condições de ajudar em algum assunto, coloca ali o assunto em que
se julga competente e o seu nome. Assim, vai-se se formando uma rede de
relações de ajuda.
Ando um pouco mais e encontro uma menina com síndrome de Down trabalhando com outras, numa mesinha. Ela trabalha de forma concentrada. Seu presença é uma presença igual à de todas as demais crianças: alguém que não sabe muitas coisas, que pode aprender muitas coisas. Acima de tudo ela aprende que ela tem um lugar importante na vida.
Andando, vi um texto intitulado: "Direitos das crianças quanto à leitura".
O primeiro direito rezava: "Toda criança tem o direito de não ler o livro
de que não gosta." Ah!, pensei, "é possível que Jorge Luis Borges
tenha andado por aqui..." Li depois, o texto dos "Direitos e Deveres",
elaborados pelas próprias crianças. Dentre todos, o que mais me
impressionou foi o que dizia assim: "Temos o direito de ouvir música na
sala de trabalho para pensarmos em silêncio"...
Nesse momento eu já estava encantado! No próxima coluna eu conto mais...
A Escola da Ponte - 2
A menina que me guiava apontou para um computador num canto da sala imensa: "É o computador do "Acho bom" e do"Acho mal". Quando nos sentimos contentes com algo, escrevemos no "Acho bom".
ache em condições de ajudar em algum assunto, coloca ali o assunto em que
se julga competente e o seu nome. Assim, vai-se se formando uma rede de
relações de ajuda.
Ando um pouco mais e encontro uma menina com síndrome de Down trabalhando com outras, numa mesinha. Ela trabalha de forma concentrada. Seu presença é uma presença igual à de todas as demais crianças: alguém que não sabe muitas coisas, que pode aprender muitas coisas. Acima de tudo ela aprende que ela tem um lugar importante na vida.
Andando, vi um texto intitulado: "Direitos das crianças quanto à leitura".
O primeiro direito rezava: "Toda criança tem o direito de não ler o livro
de que não gosta." Ah!, pensei, "é possível que Jorge Luis Borges
tenha andado por aqui..." Li depois, o texto dos "Direitos e Deveres",
elaborados pelas próprias crianças. Dentre todos, o que mais me
impressionou foi o que dizia assim: "Temos o direito de ouvir música na
sala de trabalho para pensarmos em silêncio"...
Nesse momento eu já estava encantado! No próxima coluna eu conto mais...
A Escola da Ponte - 2
A menina que me guiava apontou para um computador num canto da sala imensa: "É o computador do "Acho bom" e do"Acho mal". Quando nos sentimos contentes com algo, escrevemos no "Acho bom".
Quando, ao contrário, nos sentimos infelizes, escrevemos no "Acho
mal". Examinei o "Acho mal". A curiosidade é sempre espicaçada por coisas
ruins. "Acho mal que o Tomás de estalos na cara da Francisca". Pensei: "Ah!
Tomás! Tu estás perdido! Todos já sabem o que fazes! Se continuas,
certamente terás de comparecer perante o Tribunal para dares conta dos teus
atos." E, no "Acho bom" estão os louvores aos gestos e coisas boas.
Treinamento dos olhos e da fala. O normal é que os olhos vejam mais as
coisas ruins e que a boca tenha mais prazer em falar sobre elas. Mas lá, na
Escola da Ponte, as crianças são convidadas a ver o bom, o bonito, o
generoso, e a falar sobre eles.
Tribunal...A menina me havia falado sobre problemas de disciplina. Para
tais situações as crianças estabeleceram um tribunal. Aquele que
desrespeita as regras de convivência, por elas mesmas estabelecidas, tem de
comparecer perante esse tribunal. Sua primeira pena é pensar durante três
dias sobre os seus atos. Depois ele retorna, para dizer o que pensou. Minha
guia não me esclareceu sobre o que acontece com os impenitentes
reincidentes. Mas o culpado fui eu: não perguntei.
Aí fomos para o refeitório. Havia um grupo de alunos e professoras reunido
à volta de uma mesa. "Estão a preparar a assembléia de hoje. Temos uma
assembléia que se reúne semanalmente para tratar dos problemas da escola e
para sugerir soluções. Aquele é o presidente", ela me disse, apontando para
um menino.
Ao fim do dia reuniu-se a assembléia. Fui convidado a falar alguma coisa.
Havia levado comigo um carrinho, feito com uma lata de sardinha. Já escrevi
sobre ele. Quando o vi pela primeira vez, numa exposição de brinquedos na
Bahia, fiquei tão impressionado que a dona da exposição m'o ( Meu Deus!
Fiquei infectado pela maneira portuguesa erudita de falar! Para quem não
sabe: m'o = me + o ) deu como presente. Conversei com as crianças sobre o
carrinho. O que me interessava não era o carrinho. Era o processo de sua
produção. Brinquedo construído por um menino pobre que sonhava com um
carrinho e não tinha dinheiro para comprar. Se fosse rico, era só pedir
para o pai - ele compraria um carrinho eletrônico movido ao aperto de um
botão, o que desenvolveria o dedo e atrofiaria a inteligência. Dinheiro
demais é emburrecedor. Perguntei uma pergunta tola: " Em que loja se compra
um carrinho assim?" Esperava a resposta óbvia: " Esse carrinho não se
compra em lojas..." Uma menina levantou o dedo. O que ela disse me
assombrou: "Esse carrinho se compra na loja das mãos". "Loja das mãos": ela
me respondeu com poesia. Seguiu-se um período de perguntas. Pasmem: em
nenhum momento qualquer aluno interrompeu o outro. Isso é lei que as
crianças estabeleceram. Está escrito na lista de "Direitos e Deveres".
Pensei que o senador Antônio Carlos Magalhães e o deputado Jader Barbalho
deveriam fazer um estágio na Escola da Ponte. Quem desejava falar levantava
na mão e aguardava a indicação do presidente. Às cinco horas o presidente
falou: "Já está na hora de terminar. Vou dar a palavra para mais um colega
e terminaremos." E assim foi. Ao final, vieram conversar comigo. Uma menina
me perguntou: "Tens mirk?" Nem sei se é assim que se escreve. O fato é que
eu nunca havia ouvido essa palavra. Ela me explicou: "Aquele programa de
computador que permite que se converse. Quero conversar contigo..." Não. Eu
não tinha mirk... Um menininho chegou à minha frente segurando um chaveiro:
uma correntinha com um pequeno sino na ponta. Ficou olhando para mim.
Perguntei: "E isso?"
"Um presente para ti", respondeu. Não me esquecerei do Sérgio...Sei que
vocês devem estar incrédulos. Como é possível uma escola assim, sem turmas,
sem professores e aulas de português, geografia, ciências, história, em
lugares e horas determinadas, de acordo com um programa, linha de montagem,
com testes e conceitos ao final? Será que as crianças aprendem?
Respondo fazendo uma pergunta: qual é a coisa mais difícil de ser ensinada,
mais difícil de ser aprendida, quem ensina não sabe que está ensinando,
quem aprende não sabe que está aprendendo e, ao final, a aprendizagem
acontece sempre? É a linguagem. Não existe nada, absolutamente nada que se
compare à linguagem em complexidade. No entanto, sem que haja qualquer
ensino formal, sem que os que ensinam a falar - pai, mãe, tio, avô, irmãos
- tenham tido aulas teóricas sobre a formação da linguagem, as crianças
aprendem a falar.
Imaginem que o ensino da linguagem se desse em escolas, segundo os moldes
de linha de montagem que conhecemos: aulas de substantivos, aulas de
adjetivos, aulas de verbos, aulas de sintaxe, aulas de pronúncia. O que
aconteceria? As crianças não aprenderiam a falar. Por que é que a
aprendizagem da linguagem é tão perfeita, sendo tão informal e tão sem
ordem certa? Porque ela vai acontecendo seguindo a experiência vital da
criança: o falar vai colado à experiência que está acontecendo no presente.
Somente aquilo que é vital é aprendido. Por que é que, a despeito de toda
pedagogia, as crianças têm dificuldades em aprender nas escolas? Porque nas
escolas o ensinado não vai colado à vida. Isso explica o desinteresse dos
alunos pela escola. Alguns me contestarão dizendo: "Mas o meu filho adora a
escola!" Pergunto: Ele adora a escola por aquilo que está aprendendo ou por
outras razões? Confesso não saber de um aluno que tenha prazer em conversar
com os pais sobre aquilo que está aprendendo na escola. Explica também a
indisciplina. Por que haveria uma criança de disciplinar-se, se aquilo que
ela tem de aprender não é aquilo que o seu corpo deseja saber? E explica
também a preguiça que sentem as crianças ao se defrontar com as lições de
casa. Roland Barthes tem um delicioso ensaio sobre a preguiça. Segundo ele
há dois tipos de preguiça. Um deles, abençoado, é a preguiça de quem está
deitado na rede de barriga cheia. Não quer fazer nada porque na rede está
muito bom. O outro tipo é a preguiça infeliz, ligado inseparavelmente à
escola. O aluno se arrasta sobre a lição de casa. Não quer fazê-la. A vida
o está chamando numa outra direção mais alegre. Mas ele não tem
alternativas. É obrigado a fazer a lição. Por isso ele se arrasta em
sofrimento.
O conhecimento é uma árvore que cresce da vida. Sei que há escolas que têm
boas intenções, e que se esforçam para que isso aconteça. Mas as suas boas
intenções são abortadas porque são obrigadas a cumprir o programa.
Programas são entidades abstratas, prontas, fixas, com uma ordem certa.
Ignoram a experiência que a criança está vivendo. Aí tenta-se, inutilmente,
produzir vida a partir dos programas. Mas não é possível, a partir da mesa
de anatomia, fazer viver o cadáver. O que vi na Escola da Ponte é o
conhecimento crescendo a partir das experiências vividas pelas crianças.
Aí vocês me perguntarão: "Mas o programa é cumprido?" Sobre isso falarei na
próxima crônica.
A Escola da Ponte - 3
Contei sobre a escola com sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir.
Mas existia, em Portugal...Quando a vi, fiquei alegre e repeti, para ela, o
que Fernando Pessoa havia dito para uma mulher amada: "Quando te vi,
amei-te já muito antes..."
Gente de boa memória jamais entenderá aquela escola. Para entender é
preciso esquecer quase tudo o que sabemos. A sabedoria precisa de
esquecimento. Esquecer é livrar-se dos jeitos de ser que se sedimentaram em
nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito como são.
Não. Não é preciso que as coisas continuem a ser do jeito como sempre
foram.
Como são e têm sido as escolas? Que nos diz a memória? A imagem: uma casa,
várias salas, crianças separadas em grupos chamados "turmas". Nas salas os
professores ensinam saberes. Toca uma campainha. Terminou o tempo da aula.
Os professores saem. Outros entram. Começa uma nova aula. Novos saberes são
ensinados. O que é que os professores estão fazendo? Estão cumprindo um
"programa". "Programa" é um cardápio de saberes organizados em seqüência
lógica, estabelecido por uma autoridade superior invisível, que nunca está
com as crianças. Os saberes dos cardápio "programa" não são "respostas" às
perguntas que as crianças fazem. Por isso as crianças não entendem por que
têm de aprender o que lhes está sendo ensinado. Nunca vi uma criança
questionar a aprendizagem do falar. Uma criancinha de oito meses já está
doidinha para aprender a falar. Ele vê os grandes falando entre si, falando
com elas, sentem que falar é uma coisa divertida e útil, e logo começam a
ensaiar a fala, por conta própria. Fazem de conta que estão falando.
Balbuciam. Brincam com os sons. E quando conseguem falar a primeira
palavra, sentem a alegria dos que a cercam. E vão aprendendo, sem que
ninguém lhes diga que elas têm de aprender a falar e sem que o misterioso
processo de ensino e aprendizagem da fala esteja submetido a um programa
estabelecido por autoridades invisíveis. Elas aprendem a falar porque o
falar é parte da vida.
Nunca ninguém me disse que eu deveria aprender a descascar laranjas.
Aprendi porque via o meu pai descascando laranjas com uma mestria ímpar,
sem arrebentar a casca e sem ferir a laranja, e eu queria fazer aquilo que
ele fazia. Aprendi sem que me fosse ensinado. A arte de descascar laranjas
não se encontra em programas de escola. O corpo tem uma precisa filosofia
de aprendizagem: ele aprende os saberes que o ajudam a resolver os
problemas com que está se defrontando. Os programas são uma violência que
se faz com o jeito que o corpo tem de aprender. Não admira que as crianças
e adolescentes se revoltem contra aquilo que os programas os obrigam a
aprender. Ainda ontem uma amiga me dizia que sua filha, de 10 anos, lhe
dizia: "Mãe, por que tenho de ir à escola? As coisas que tenho de aprender
não servem para nada. Que me adianta saber o que significa "oxítona"? Prá
que serve esta palavra?" A menina sabia mais que aqueles que fizeram os
programas.
Vamos começar do começo. Imagine o homem primitivo, exposto à chuva, ao
frio, ao vento, ao sol. O corpo sofre. O sofrimento faz pensar: "Preciso
de abrigo", ele diz. Aí, forçada pelo sofrimento, a inteligência entra em
ação. Pensa para deixar de sofrer. Pensando, conclui: "Uma caverna seria um
bom abrigo contra a chuva, o frio, o vento, o sol..." Instruídos pela
inteligência os homens procuram uma caverna e passam a morar nela.
Resolvido o sofrimento, a inteligência volta a dormir. Mas aí, forçados ou
pela fome ou por um grupo armado que lhes toma a caverna, eles são forçados
a se mudar para uma planície onde não há cavernas. O corpo volta a sofrer.
O sofrimento acorda a inteligência e faz com que ela trabalhe de novo. A
solução original não serve mais: não há cavernas. A inteligência pensa e
conclui: "É preciso construir uma coisa que faça às vezes de caverna. Essa
coisa tem de ter um teto, para proteger do sol e da chuva. Tem de ter
paredes, para proteger do vento e do frio. Com que se pode fazer um teto?" A inteligência se põe então a procurar um material que sirva para fazer o
teto. Folhas de palmeira? Capim? Pedaços de pau? Mas o teto não flutua no
ar. Tem de haver algo que o sustente. Paus fincados? Sim. Mas para fincar
um pau é preciso descobrir uma ferramenta para cortar o pau. Depois, uma
ferramenta para fazer o buraco na terra. E assim vai a inteligência,
inventando ferramentas e técnicas, à medida em que o corpo se defronta com
necessidades práticas. A inteligência, entre os esquimós, jamais pensaria
uma casa de pau-a-pique. Entre eles não há nem madeira e nem barro.
Produziu o iglu. E a inteligência do homem que vive na floresta jamais
pensaria um iglu - porque nas florestas não há gelo. Produziu a casa de
pau-a-pique. A inteligência é essencialmente prática. Está a serviço da
vida.
Um exercício fascinante a se fazer com as crianças seria provocá-las para
que elas imaginassem o nascimento dos vários objetos que existem numa casa.
Todos os objetos, os mais humildes, têm uma história para contar. Que
necessidade fez com que se inventassem panelas, facas, vassouras, o
fósforo, a lâmpada, as garrafas, o fio dental?... Quais poderiam ter sido
os passos da inteligência, no processo de inventá-los? Quem é capaz de, na
fantasia, reconstruir a história da invenção desses objetos, fica mais
inteligente.
Depois de inventados, eles não precisam ser inventados de novo. Quem
inventou passa a possuir a receita para a sua fabricação. E é assim que as
gerações mais velhas passam para seus filhos as receitas de técnicas que
tornam possível a sobrevivência. Esse é o seu mais valioso testamento: um
saber que torna possível viver. As gerações mais novas, assim, são poupadas
do trabalho de inventar tudo de novo. E os jovens aprendem com alegria as
lições dos mais velhos: porque suas lições os fazem participantes do
processo de vida que une a todos. A aprendizagem da linguagem se dá de
forma tão eficaz porque a linguagem torna a criança um membro do grupo: ela
participa da conversa, fala e os outros ouvem, ri das coisas engraçadas que
se dizem. O mesmo pode ser dito da aprendizagem de técnicas: o indiozinho
que aprende a fabricar e a usar o arco e a flecha, a construir canoas e a
pescar, a andar sem se perder na floresta, a construir ocas, está se
tornando num membro do seu grupo, reconhecido por suas habilidades e por
sua contribuição à sobrevivência da tribo. O que ele aprende e sabe, faz
sentido. Ele sabe o uso dos seus saberes. (A menininha não sabia o uso da
palavra "oxítona". Nem eu. Sei o que ela quer dizer. Não sei para que
serve. Quando eu escrevo nunca penso em "oxítona". Ninguém que fale a
língua, por ignorar o sentido de "oxítona", vai falar "cáfe", ao invés de
café, ou "chúle", ao invés de "chulé"... A palavra "oxítona" não me ensina
a falar melhor. É, portanto, inútil....)
Disse, numa outra crônica, que quero escola retrógrada. Retrógrado quer
dizer "que vai para trás". Quero uma escola que vá mais para trás dos
"programas" científica e abstratamente elaborados e impostos. Uma escola
que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Uma escola em que o ponto
de referência não seja o programa oficial a ser cumprido (inutilmente!),
mas o corpo da criança que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta,
enfia o dedo, prova com a boca, erra, se machuca, brinca. Uma escola que
seja iluminada pelo brilho dos inícios.
Mas, repentinamente, desfaz-se o encanto da perda da memória e nos
lembramos da pergunta: "Mas, e o programa? Ele é cumprido?"
Depois eu respondo.
A Escola da Ponte - 4
Imaginar não faz mal. Pois imagine que você é uma mãe das antigas. E sua
filha vai se casar. Mãe responsável que você é, você a chama e lhe diz:
"Minha filha, você vai se casar. Desejo que seu casamento seja durável.
Casamento durável depende do amor. E você nada sabe sobre as artimanhas do
amor. O que você está sentindo agora não é amor; é paixão. Paixão é fogo de
palha. Acaba logo. Casamento não se sustenta com fogo que acaba logo. Vou
lhe ensinar o segredo do amor permanente, o fogo que não se apaga nunca.
Você deve aprender o segredo do fogo que faz o coração do seu marido arder,
no dia a dia. Pois bem, saiba que o caminho para o coração de um homem
passa pelo estômago. O casamento não se sustenta com o fogo da cama. Ele se
sustenta com o fogo da mesa. Vou lhe dar o presente mais precioso, o "Livro
de Dona Benta", centenas de receitas. Mas não só isso, vou lhe ensinar
todas as receitas desse livro maravilhoso." Ditas essas palavras você, mãe,
dá início a um programa de culinária, uma receita depois da outra, na ordem
certa. Cada dia sua filha deve aprender uma receita e, uma vez por mês,
você faz uma avaliação da aprendizagem. Ela deve ser capaz de repetir as
receitas.
É claro que isso que eu disse é uma tonteira. Ninguém ensina a cozinhar
assim. Não é possível saber todas as receitas. Por que ter de saber todas
as receitas, se elas estão escritas no livro de receitas? A gente aprende
uma receita quando fica com vontade de experimentar aquele prato nunca
dantes experimentado. O ato de aprender acontece em resposta a um desejo.
"Quero fazer, amanhã, uma ‘vaca atolada’. " Como é que se faz uma ‘vaca atolada’, se nunca fiz? É só procurar no livro de receitas, sob o título
‘vaca atolada’. A gente lê e aprende porque vai fazer ‘vaca atolada’...”
Pois os programas de aprendizagem a que nossas crianças e adolescentes têm
de se submeter nas escolas são iguais à aprendizagem de receitas que não
vão ser feitas. Receitas aprendidas sem que se vá fazer o prato são logo
esquecidas. A memória é um escorredor de macarrão. O escorredor de macarrão
existe para deixar passar o que não vai ser usado: passa a água, fica o
macarrão. Essa é a razão por que os estudantes esquecem logo o que são
forçados a estudar. Não por falta de memória. Mas porque sua memória
funciona bem: não sei para que serve; deixo passar...
Na "Escola da Ponte" a aprendizagem acontece a partir de pratos que vão ser
preparados e comidos. Por isso as crianças aprendem e têm prazer em
aprender. Mas, e o programa? É cumprido? Pergunta tola. É o mesmo que
perguntar se a jovem casadoira aprendeu todas as receitas do "Livro de Dona
Benta"... É claro que o "Livro de Dona Benta" não é para ser aprendido.
Programas não podem ser aprendidos... São logo escorridos.
Quando visitei a "Escola da Ponte" o tema quente era a descoberta do Brasil
e tudo o mais que a cercava. As crianças estavam fascinadas com os feitos
dos navegadores seus antepassados nessa aventura, mais ousada que a viagem
dos astronautas à lua. Imagine agora que algumas crianças tenham ficado
curiosas diante do assombro tecnológico que tornou os descobrimentos
possíveis, as caravelas. Organizam-se num grupo para estudá-las. Um diretor
de escola rigoroso e cumpridor dos seus deveres torceria o nariz. "O tema
"caravelas" não consta de nenhum programa nem aqui e nem em nenhum outro lugar do mundo", ele diria. E concluiria: "Não constando de nenhum programa não deve ser objeto de estudo. Perda de tempo. Não vai cair no vestibular."
Acontece que uma caravela é um objeto no qual estão entrelaçadas as mais
variadas ciências. As caravelas são um laboratório de física. Parece que a
caravela brasileira, construída para comemorar o descobrimento, teve de
retornar ao ancoradouro, por perigo de emborcar. Um famoso vaso de guerra
sueco, o Wasa, se não me engano do século XVI, virou e afundou depois de
navegar por não mais que 400 metros. Retirado do fundo do mar há cerca de
25 anos, ele pode ser visto hoje num museu de Estocolmo. O que havia de
errado com o Wasa e a caravela brasileira? O que havia de errado tem, em
física, o nome de "centro de gravidade". O "centro de gravidade" estava no
lugar errado. O tal centro de gravidade é o que explica por que os
bonequinhos chamados “João Teimoso" não caem nunca! A regra é: para não
emborcar, o centro de gravidade do navio deve estar abaixo da linha do mar.
Essa é a razão por que os navios, freqüentemente, têm necessidade de um
lastro - um peso que faz com que o centro de gravidade se desloque para
mais baixo. "Se o centro de gravidade estiver fora do lugar, o navio vira e
afunda.
Os estudantes aprendem, em física, como parte do programa abstrato que têm
de aprender, uma regra chamada do "paralelogramo" - regra de composição de
forças. Duas forças incidindo sobre um ponto, uma delas F1, a outra F2,
cada uma numa direção diferente. Para onde se movimenta o objeto sobre o
qual incidem? Nem na direção de F1, nem na direção de F2. Diz essa regra
que o objeto vai se movimentar numa direção que se determina pela
construção de um "paralelogramo". É o que se chama de "resultante". Os
alunos aprendem a resolver o problema no papel, mas não sabem para que ele
serve na vida. E o aprendido escorre pelos furos do "escorredor de
macarrão"... Pois é essa regra que explica, teoricamente, o mistério de um
barco que navega numa direção contrária à do vento. Se o barco estivesse à
mercê do vento ele só navegaria na direção em que o vento sopra, situação
essa que tornaria a navegação impossível. Quem se aventuraria a navegar num
barco que só navega na direção do vento e não na direção que se deseja? Mas
os navegadores descobriram que, com o auxílio de uma outra força, de
direção distinta da direção do vento, é possível fazer com que o barco
navegue na direção que se deseja. E é essa a função do leme. O leme, pela
resistência da água, cria uma outra força que, colocada no ângulo adequado,
produz a direção de navegação desejada. Os alunos aprenderiam melhor se, ao
invés de gráficos geométricos, eles fosse instruídos na arte da navegação.
Da física passamos à história, a influência de Veneza, dominadora do
Mediterrâneo com seus barcos, sobre a tecnologia lusitana de construção de
caravelas. Da história para a astronomia, a ciência da orientação pelas
estrelas. O astrolábio. A bússola. Daí, para esses assombros simbólicos
chamados mapas - que só fazem sentido para o navegador se ele conhecer a
arte de se orientar, a direção do norte, mesmo quando nada pode ser visto,
a não ser o oceano que o cerca por todos os lados. (Olhando para a lua, de
noite, você é capaz de dizer a direção do sol?). Dos mapas para a
literatura, a "Carta de Pero Vaz de Caminha", a poesia de Camões, a poesia
de Fernando Pessoa: "Ó mar salgado, quando do seu sal são lágrimas de
Portugal! Por te cruzarmos quantas mães choraram, quantos filhos em vão
rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar
além do Bojador tem de passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo
deu, mas nele é que espelhou o céu."
Aceitemos um fato simples: um programa cumprido, dado pelo professor do
princípio ao fim, é só cumprido formalmente. Programa cumprido não é
programa aprendido " mesmo que os alunos tenham passado nos exames. Os
exames são feitos enquanto a água ainda não acabou de se escoar pelo
escorredor de macarrão. Esse é o destino de toda ciência que não é
aprendida a partir da experiência: o esquecimento.
Quanto à ciência que se aprende a partir da vida, ela não é esquecida
nunca. A vida é o único programa que merece ser seguido.
A Escola da Ponte - 5
Imagino que você, que procura minhas crônicas aos domingos, deve estar
cansado. Pois este é o quinto domingo em que falo sobre a mesma coisa.
Pessoas que falam sempre sobre as mesmas coisas são chatas. Além do que
essa insistência em uma coisa só é contrária ao estilo de crônicas.
Crônicas, para serem gostosas, devem refletir a imensa variedade da vida.
Um cronista é um fotógrafo. Ele fotografa com palavras. Crônicas são
dádivas aos olhos. Ele deseja que os leitores vejam a mesma coisa que ele
viu. Se normalmente não sou chato, deve haver alguma razão para essa
insistência em fotografar uma mesma coisa. Quem fotografa um mesmo objeto
repetidas vezes deve estar apaixonado. Comporta-se como os fotógrafos de
modelos, clic, clic, clic, clic, clic...: dezenas, centenas de fotos, cada
uma numa pose diferente! Um dos meus pintores favoritos é Monet. Pois ele
fez essa coisa insólita: pintou um monte de feno muitas vezes. E o curioso
é que ele nem mudou de lugar, não procurou ângulos diferentes. Ficou
assentado no seu banquinho, cavalete no mesmo lugar, e foi pintando,
pintando. Porque, na verdade, o que ele estava pintando não era o monte de
feno, uma coisa banal, de gosto bovino. O que ele estava pintando era a
luz. Ele só usou o monte de feno como espelho onde a luz aparecia
refletida, não como uma coisa fixa, mas como uma coisa móvel. A série de
telas do monte de feno bem que poderia chamar-se "Strip tease da luz":
devagar, bem devagar, ela vai se desnudando...
Pois estou fazendo com as minhas crônicas o que Monet fez: ele, diante do
monte de feno; eu, diante de uma pequena escola por que me apaixonei --
pois ela é a escola com que sempre sonhei sem ter sido capaz de desenhar.
Nunca fui professor primário. Fui professor universitário. O Vinícius,
descrevendo a bicharada saindo da Arca de Noé, disse: "Os fortes vão na
frente tendo a cabeça erguida e os fracos, humildemente, vão atrás, como na
vida..." Pois é exatamente assim que acontece na Arca de Noé dos
professores: os professores universitários vão na frente tendo a cabeça
erguida, e os primários, humildemente, vão atrás, como na vida... Professor
universitário é doutor, cientista, pesquisador, publica em revistas
internacionais artigos em inglês sobre coisas complicadas que ninguém mais
sabe e são procurados como assessores de governo e de empresas. Professor
primário é professor de 3ª classe, não precisa nem ter mestrado nem falar
inglês, dá aulas para crianças sobre coisas corriqueiras que todo mundo
sabe. Crianças -- essas coisinhas insignificantes, que ainda não são...
Haverá atividade mais obscura? Professores universitários gostam das luzes
do palco. Professores primários vivem na sombra...
Quando entrei na universidade para ser professor senti-me muito importante.
Com o passar do tempo fui sendo invadido por uma grande desilusão -- tédio
--, um cansaço diante da farsa. Partilhei da desilusão dos alunos que se
sentiram muito importantes quando passaram no vestibular e até ficaram
felizes quando os veteranos lhes rasparam o cabelo. Cabelo raspado é
distintivo: "Passei! Passei!" Não levou muito tempo para que descobrissem
que a universidade nada tinha que ver com os seus sonhos. E essa é a razão
por que fazem tanta festa e foguetório quando tiram o diploma. Fim do
sofrimento sem sentido.
A velhice me abriu os olhos. Quando se chega no topo, quando não há mais
degraus para subir, a gente começa a ver com uma clareza que não tinha
antes. "Tenho a lucidez de quem está para morrer", dizia Fernando Pessoa na
"Tabacaria". Fiquei lúcido! E o que vi com clareza foi o mesmo que viu
Joseph Knecht, o personagem central do livro de Hesse “O jogo das contas de
vidro”: depois de chegar no topo, percebeu o equívoco. E surgiu, então, o
seu grande desejo: ensinar uma criança, uma única criança que ainda não
tivesse sido deformada (essa é a palavra usada por Hesse) pela escola.
Também eu: quero voltar para as crianças. A razão? Por elas mesmas. É bom
estar com elas. Crianças têm um olhar encantado. Visitando uma reserva
florestal no estado do Espírito Santo, a bióloga encarregado do programa de
educação ambiental me disse que é fácil lidar com as crianças. Os olhos
delas se encantam com tudo: as formas das sementes, as plantas, as flores,
os bichos. Tudo, para elas, é motivo de assombro. E acrescentou: "Com os
adolescentes é diferente. Eles não têm os olhos para as coisas. Eles só têm
olhos para eles mesmos..." Eu já tinha percebido isso. Os adolescentes já
aprenderam a triste lição que se ensina diariamente nas escolas: Aprender é
chato. O mundo é chato. Os professores são chatos. Aprender, só sob ameaça
de não passar no vestibular.
Por isso quero ensinar as crianças. Elas ainda têm olhos encantados. Seus
olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do
pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Tudo é espantoso:
um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxo, uma concha de caramujo, o vôo dos urubus, o zunir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos,
uma pipa no céu, um pião na terra. Dessas coisas, invisíveis aos eruditos
olhos dos professores universitários (eles não podem ver, coitados; a
especialização tornou-os cegos como toupeiras, só vêem dentro do espaço
escuro de suas rocas -- e como vêem bem!), nasce o espanto diante da vida;
desse espanto, a curiosidade; da curiosidade, a fuçação (essa palavra não
está no Aurélio) chamada pesquisa; dessa fuçação, o conhecimento; e do
conhecimento, a alegria!
Pensamos que as coisas a serem aprendidas são aquelas que constam dos
programas. Essa é a razão por que os professores devem preparar seus planos
de aula. Mas as coisas mais importantes não são ensinadas por meio de aulas
bem preparadas. Elas são ensinadas inconscientemente. Bom seria que os
educadores lessem ruminativamente (também não se encontra no Aurélio) o
Roland Barthes. Ele descreveu o seu ideal de aula como sendo a criação de
um espaço -- isso mesmo! Um espaço! -- parecido com aquele que existe
quando uma criança brinca ao redor da mãe. A criança pega um botão leva
para a mãe. A mãe ri, e faz um corrupio (você sabe o que é um corrupio?).
Pega um pedaço de barbante. Leva para a mãe. A mãe ri e lhe ensinar a fazer
nós. Ele conclui que o importante não é nem o botão nem o barbante, mas
esse espaço lúdico que se ensina sem que se fale sobre ele.
Na Escola da Ponte o mais importante que se ensina é esse espaço. Nas
nossas escolas: salas separadas -- o que se ensina é que a vida é cheia de
espaços estanques; turmas separadas e hierarquizadas -- o que se ensina é
que a vida é feita de grupos sociais separados, uns em cima dos outros.
Conseqüência prática: a competição entre as turmas, competição que chega à
violência (os trotes!). Saberes ministrados em tempos definidos, um após o
outro: o que se ensina é que os saberes são compartimentos estanques (e
depois reclamam que os alunos não conseguem integrar o conhecimento. Apelam
então para a "transdisciplinaridade", para corrigir o estrago feito. O que
me faz lembrar um filme de O Gordo e o Magro. Ainda falo sobre o tal filme,
Queijo Suíço...). Ah! Uma vez cometido o erro arquitetônico, o espírito da
escola já está determinado! Mas nem arquitetos nem técnicos da educação
sabem disso...
Escola da Ponte: um único espaço, partilhado por todos, sem separação por
turmas, sem campainhas anunciando o fim de uma disciplina e o início da
outra. A lição social: todos partilhamos de um mesmo mundo. Pequenos e
grandes são companheiros numa mesma aventura. Todos se ajudam. Não há
competição. Há cooperação. Ao ritmo da vida: os saberes da vida não seguem
programas. É preciso ouvir os "miúdos", para saber o que eles sentem e
pensam. É preciso ouvir os "graúdos", para saber o que eles sentem e
pensam. São as crianças que estabelecem as regras de convivência: a
necessidade do silêncio, do trabalho não perturbado, de se ouvir música
enquanto trabalham. São as crianças que estabelecem os mecanismos para
lidar com aqueles que se recusam a obedecer às regras. Pois o espaço da
escola tem de ser como o espaço do jogo: o jogo, para ser divertido e fazer
sentido, tem de ter regras. Já imaginaram um jogo de vôlei em que cada
jogador pode fazer o que quiser? A vida social depende de que cada um abra
mão da sua vontade, naquilo em que ela se choca com a vontade coletiva. E
assim vão as crianças aprendendo as regras da convivência democrática, sem
que elas constem de um programa...
Minha cabeça está coçando com o sonho de fazer uma escola parecida... Você
matricularia seu filho numa escola assim? Mande sua resposta com suas
razões para rubem@correionet.com.br -- estou curioso! Mas, para fazer essa
escola, tenho de resolver primeiro um problema: como é que o graxo coloca o
primeiro graveto para construir o seu ninho?
mal". Examinei o "Acho mal". A curiosidade é sempre espicaçada por coisas
ruins. "Acho mal que o Tomás de estalos na cara da Francisca". Pensei: "Ah!
Tomás! Tu estás perdido! Todos já sabem o que fazes! Se continuas,
certamente terás de comparecer perante o Tribunal para dares conta dos teus
atos." E, no "Acho bom" estão os louvores aos gestos e coisas boas.
Treinamento dos olhos e da fala. O normal é que os olhos vejam mais as
coisas ruins e que a boca tenha mais prazer em falar sobre elas. Mas lá, na
Escola da Ponte, as crianças são convidadas a ver o bom, o bonito, o
generoso, e a falar sobre eles.
Tribunal...A menina me havia falado sobre problemas de disciplina. Para
tais situações as crianças estabeleceram um tribunal. Aquele que
desrespeita as regras de convivência, por elas mesmas estabelecidas, tem de
comparecer perante esse tribunal. Sua primeira pena é pensar durante três
dias sobre os seus atos. Depois ele retorna, para dizer o que pensou. Minha
guia não me esclareceu sobre o que acontece com os impenitentes
reincidentes. Mas o culpado fui eu: não perguntei.
Aí fomos para o refeitório. Havia um grupo de alunos e professoras reunido
à volta de uma mesa. "Estão a preparar a assembléia de hoje. Temos uma
assembléia que se reúne semanalmente para tratar dos problemas da escola e
para sugerir soluções. Aquele é o presidente", ela me disse, apontando para
um menino.
Ao fim do dia reuniu-se a assembléia. Fui convidado a falar alguma coisa.
Havia levado comigo um carrinho, feito com uma lata de sardinha. Já escrevi
sobre ele. Quando o vi pela primeira vez, numa exposição de brinquedos na
Bahia, fiquei tão impressionado que a dona da exposição m'o ( Meu Deus!
Fiquei infectado pela maneira portuguesa erudita de falar! Para quem não
sabe: m'o = me + o ) deu como presente. Conversei com as crianças sobre o
carrinho. O que me interessava não era o carrinho. Era o processo de sua
produção. Brinquedo construído por um menino pobre que sonhava com um
carrinho e não tinha dinheiro para comprar. Se fosse rico, era só pedir
para o pai - ele compraria um carrinho eletrônico movido ao aperto de um
botão, o que desenvolveria o dedo e atrofiaria a inteligência. Dinheiro
demais é emburrecedor. Perguntei uma pergunta tola: " Em que loja se compra
um carrinho assim?" Esperava a resposta óbvia: " Esse carrinho não se
compra em lojas..." Uma menina levantou o dedo. O que ela disse me
assombrou: "Esse carrinho se compra na loja das mãos". "Loja das mãos": ela
me respondeu com poesia. Seguiu-se um período de perguntas. Pasmem: em
nenhum momento qualquer aluno interrompeu o outro. Isso é lei que as
crianças estabeleceram. Está escrito na lista de "Direitos e Deveres".
Pensei que o senador Antônio Carlos Magalhães e o deputado Jader Barbalho
deveriam fazer um estágio na Escola da Ponte. Quem desejava falar levantava
na mão e aguardava a indicação do presidente. Às cinco horas o presidente
falou: "Já está na hora de terminar. Vou dar a palavra para mais um colega
e terminaremos." E assim foi. Ao final, vieram conversar comigo. Uma menina
me perguntou: "Tens mirk?" Nem sei se é assim que se escreve. O fato é que
eu nunca havia ouvido essa palavra. Ela me explicou: "Aquele programa de
computador que permite que se converse. Quero conversar contigo..." Não. Eu
não tinha mirk... Um menininho chegou à minha frente segurando um chaveiro:
uma correntinha com um pequeno sino na ponta. Ficou olhando para mim.
Perguntei: "E isso?"
"Um presente para ti", respondeu. Não me esquecerei do Sérgio...Sei que
vocês devem estar incrédulos. Como é possível uma escola assim, sem turmas,
sem professores e aulas de português, geografia, ciências, história, em
lugares e horas determinadas, de acordo com um programa, linha de montagem,
com testes e conceitos ao final? Será que as crianças aprendem?
Respondo fazendo uma pergunta: qual é a coisa mais difícil de ser ensinada,
mais difícil de ser aprendida, quem ensina não sabe que está ensinando,
quem aprende não sabe que está aprendendo e, ao final, a aprendizagem
acontece sempre? É a linguagem. Não existe nada, absolutamente nada que se
compare à linguagem em complexidade. No entanto, sem que haja qualquer
ensino formal, sem que os que ensinam a falar - pai, mãe, tio, avô, irmãos
- tenham tido aulas teóricas sobre a formação da linguagem, as crianças
aprendem a falar.
Imaginem que o ensino da linguagem se desse em escolas, segundo os moldes
de linha de montagem que conhecemos: aulas de substantivos, aulas de
adjetivos, aulas de verbos, aulas de sintaxe, aulas de pronúncia. O que
aconteceria? As crianças não aprenderiam a falar. Por que é que a
aprendizagem da linguagem é tão perfeita, sendo tão informal e tão sem
ordem certa? Porque ela vai acontecendo seguindo a experiência vital da
criança: o falar vai colado à experiência que está acontecendo no presente.
Somente aquilo que é vital é aprendido. Por que é que, a despeito de toda
pedagogia, as crianças têm dificuldades em aprender nas escolas? Porque nas
escolas o ensinado não vai colado à vida. Isso explica o desinteresse dos
alunos pela escola. Alguns me contestarão dizendo: "Mas o meu filho adora a
escola!" Pergunto: Ele adora a escola por aquilo que está aprendendo ou por
outras razões? Confesso não saber de um aluno que tenha prazer em conversar
com os pais sobre aquilo que está aprendendo na escola. Explica também a
indisciplina. Por que haveria uma criança de disciplinar-se, se aquilo que
ela tem de aprender não é aquilo que o seu corpo deseja saber? E explica
também a preguiça que sentem as crianças ao se defrontar com as lições de
casa. Roland Barthes tem um delicioso ensaio sobre a preguiça. Segundo ele
há dois tipos de preguiça. Um deles, abençoado, é a preguiça de quem está
deitado na rede de barriga cheia. Não quer fazer nada porque na rede está
muito bom. O outro tipo é a preguiça infeliz, ligado inseparavelmente à
escola. O aluno se arrasta sobre a lição de casa. Não quer fazê-la. A vida
o está chamando numa outra direção mais alegre. Mas ele não tem
alternativas. É obrigado a fazer a lição. Por isso ele se arrasta em
sofrimento.
O conhecimento é uma árvore que cresce da vida. Sei que há escolas que têm
boas intenções, e que se esforçam para que isso aconteça. Mas as suas boas
intenções são abortadas porque são obrigadas a cumprir o programa.
Programas são entidades abstratas, prontas, fixas, com uma ordem certa.
Ignoram a experiência que a criança está vivendo. Aí tenta-se, inutilmente,
produzir vida a partir dos programas. Mas não é possível, a partir da mesa
de anatomia, fazer viver o cadáver. O que vi na Escola da Ponte é o
conhecimento crescendo a partir das experiências vividas pelas crianças.
Aí vocês me perguntarão: "Mas o programa é cumprido?" Sobre isso falarei na
próxima crônica.
A Escola da Ponte - 3
Contei sobre a escola com sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir.
Mas existia, em Portugal...Quando a vi, fiquei alegre e repeti, para ela, o
que Fernando Pessoa havia dito para uma mulher amada: "Quando te vi,
amei-te já muito antes..."
Gente de boa memória jamais entenderá aquela escola. Para entender é
preciso esquecer quase tudo o que sabemos. A sabedoria precisa de
esquecimento. Esquecer é livrar-se dos jeitos de ser que se sedimentaram em
nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito como são.
Não. Não é preciso que as coisas continuem a ser do jeito como sempre
foram.
Como são e têm sido as escolas? Que nos diz a memória? A imagem: uma casa,
várias salas, crianças separadas em grupos chamados "turmas". Nas salas os
professores ensinam saberes. Toca uma campainha. Terminou o tempo da aula.
Os professores saem. Outros entram. Começa uma nova aula. Novos saberes são
ensinados. O que é que os professores estão fazendo? Estão cumprindo um
"programa". "Programa" é um cardápio de saberes organizados em seqüência
lógica, estabelecido por uma autoridade superior invisível, que nunca está
com as crianças. Os saberes dos cardápio "programa" não são "respostas" às
perguntas que as crianças fazem. Por isso as crianças não entendem por que
têm de aprender o que lhes está sendo ensinado. Nunca vi uma criança
questionar a aprendizagem do falar. Uma criancinha de oito meses já está
doidinha para aprender a falar. Ele vê os grandes falando entre si, falando
com elas, sentem que falar é uma coisa divertida e útil, e logo começam a
ensaiar a fala, por conta própria. Fazem de conta que estão falando.
Balbuciam. Brincam com os sons. E quando conseguem falar a primeira
palavra, sentem a alegria dos que a cercam. E vão aprendendo, sem que
ninguém lhes diga que elas têm de aprender a falar e sem que o misterioso
processo de ensino e aprendizagem da fala esteja submetido a um programa
estabelecido por autoridades invisíveis. Elas aprendem a falar porque o
falar é parte da vida.
Nunca ninguém me disse que eu deveria aprender a descascar laranjas.
Aprendi porque via o meu pai descascando laranjas com uma mestria ímpar,
sem arrebentar a casca e sem ferir a laranja, e eu queria fazer aquilo que
ele fazia. Aprendi sem que me fosse ensinado. A arte de descascar laranjas
não se encontra em programas de escola. O corpo tem uma precisa filosofia
de aprendizagem: ele aprende os saberes que o ajudam a resolver os
problemas com que está se defrontando. Os programas são uma violência que
se faz com o jeito que o corpo tem de aprender. Não admira que as crianças
e adolescentes se revoltem contra aquilo que os programas os obrigam a
aprender. Ainda ontem uma amiga me dizia que sua filha, de 10 anos, lhe
dizia: "Mãe, por que tenho de ir à escola? As coisas que tenho de aprender
não servem para nada. Que me adianta saber o que significa "oxítona"? Prá
que serve esta palavra?" A menina sabia mais que aqueles que fizeram os
programas.
Vamos começar do começo. Imagine o homem primitivo, exposto à chuva, ao
frio, ao vento, ao sol. O corpo sofre. O sofrimento faz pensar: "Preciso
de abrigo", ele diz. Aí, forçada pelo sofrimento, a inteligência entra em
ação. Pensa para deixar de sofrer. Pensando, conclui: "Uma caverna seria um
bom abrigo contra a chuva, o frio, o vento, o sol..." Instruídos pela
inteligência os homens procuram uma caverna e passam a morar nela.
Resolvido o sofrimento, a inteligência volta a dormir. Mas aí, forçados ou
pela fome ou por um grupo armado que lhes toma a caverna, eles são forçados
a se mudar para uma planície onde não há cavernas. O corpo volta a sofrer.
O sofrimento acorda a inteligência e faz com que ela trabalhe de novo. A
solução original não serve mais: não há cavernas. A inteligência pensa e
conclui: "É preciso construir uma coisa que faça às vezes de caverna. Essa
coisa tem de ter um teto, para proteger do sol e da chuva. Tem de ter
paredes, para proteger do vento e do frio. Com que se pode fazer um teto?" A inteligência se põe então a procurar um material que sirva para fazer o
teto. Folhas de palmeira? Capim? Pedaços de pau? Mas o teto não flutua no
ar. Tem de haver algo que o sustente. Paus fincados? Sim. Mas para fincar
um pau é preciso descobrir uma ferramenta para cortar o pau. Depois, uma
ferramenta para fazer o buraco na terra. E assim vai a inteligência,
inventando ferramentas e técnicas, à medida em que o corpo se defronta com
necessidades práticas. A inteligência, entre os esquimós, jamais pensaria
uma casa de pau-a-pique. Entre eles não há nem madeira e nem barro.
Produziu o iglu. E a inteligência do homem que vive na floresta jamais
pensaria um iglu - porque nas florestas não há gelo. Produziu a casa de
pau-a-pique. A inteligência é essencialmente prática. Está a serviço da
vida.
Um exercício fascinante a se fazer com as crianças seria provocá-las para
que elas imaginassem o nascimento dos vários objetos que existem numa casa.
Todos os objetos, os mais humildes, têm uma história para contar. Que
necessidade fez com que se inventassem panelas, facas, vassouras, o
fósforo, a lâmpada, as garrafas, o fio dental?... Quais poderiam ter sido
os passos da inteligência, no processo de inventá-los? Quem é capaz de, na
fantasia, reconstruir a história da invenção desses objetos, fica mais
inteligente.
Depois de inventados, eles não precisam ser inventados de novo. Quem
inventou passa a possuir a receita para a sua fabricação. E é assim que as
gerações mais velhas passam para seus filhos as receitas de técnicas que
tornam possível a sobrevivência. Esse é o seu mais valioso testamento: um
saber que torna possível viver. As gerações mais novas, assim, são poupadas
do trabalho de inventar tudo de novo. E os jovens aprendem com alegria as
lições dos mais velhos: porque suas lições os fazem participantes do
processo de vida que une a todos. A aprendizagem da linguagem se dá de
forma tão eficaz porque a linguagem torna a criança um membro do grupo: ela
participa da conversa, fala e os outros ouvem, ri das coisas engraçadas que
se dizem. O mesmo pode ser dito da aprendizagem de técnicas: o indiozinho
que aprende a fabricar e a usar o arco e a flecha, a construir canoas e a
pescar, a andar sem se perder na floresta, a construir ocas, está se
tornando num membro do seu grupo, reconhecido por suas habilidades e por
sua contribuição à sobrevivência da tribo. O que ele aprende e sabe, faz
sentido. Ele sabe o uso dos seus saberes. (A menininha não sabia o uso da
palavra "oxítona". Nem eu. Sei o que ela quer dizer. Não sei para que
serve. Quando eu escrevo nunca penso em "oxítona". Ninguém que fale a
língua, por ignorar o sentido de "oxítona", vai falar "cáfe", ao invés de
café, ou "chúle", ao invés de "chulé"... A palavra "oxítona" não me ensina
a falar melhor. É, portanto, inútil....)
Disse, numa outra crônica, que quero escola retrógrada. Retrógrado quer
dizer "que vai para trás". Quero uma escola que vá mais para trás dos
"programas" científica e abstratamente elaborados e impostos. Uma escola
que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Uma escola em que o ponto
de referência não seja o programa oficial a ser cumprido (inutilmente!),
mas o corpo da criança que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta,
enfia o dedo, prova com a boca, erra, se machuca, brinca. Uma escola que
seja iluminada pelo brilho dos inícios.
Mas, repentinamente, desfaz-se o encanto da perda da memória e nos
lembramos da pergunta: "Mas, e o programa? Ele é cumprido?"
Depois eu respondo.
A Escola da Ponte - 4
Imaginar não faz mal. Pois imagine que você é uma mãe das antigas. E sua
filha vai se casar. Mãe responsável que você é, você a chama e lhe diz:
"Minha filha, você vai se casar. Desejo que seu casamento seja durável.
Casamento durável depende do amor. E você nada sabe sobre as artimanhas do
amor. O que você está sentindo agora não é amor; é paixão. Paixão é fogo de
palha. Acaba logo. Casamento não se sustenta com fogo que acaba logo. Vou
lhe ensinar o segredo do amor permanente, o fogo que não se apaga nunca.
Você deve aprender o segredo do fogo que faz o coração do seu marido arder,
no dia a dia. Pois bem, saiba que o caminho para o coração de um homem
passa pelo estômago. O casamento não se sustenta com o fogo da cama. Ele se
sustenta com o fogo da mesa. Vou lhe dar o presente mais precioso, o "Livro
de Dona Benta", centenas de receitas. Mas não só isso, vou lhe ensinar
todas as receitas desse livro maravilhoso." Ditas essas palavras você, mãe,
dá início a um programa de culinária, uma receita depois da outra, na ordem
certa. Cada dia sua filha deve aprender uma receita e, uma vez por mês,
você faz uma avaliação da aprendizagem. Ela deve ser capaz de repetir as
receitas.
É claro que isso que eu disse é uma tonteira. Ninguém ensina a cozinhar
assim. Não é possível saber todas as receitas. Por que ter de saber todas
as receitas, se elas estão escritas no livro de receitas? A gente aprende
uma receita quando fica com vontade de experimentar aquele prato nunca
dantes experimentado. O ato de aprender acontece em resposta a um desejo.
"Quero fazer, amanhã, uma ‘vaca atolada’. " Como é que se faz uma ‘vaca atolada’, se nunca fiz? É só procurar no livro de receitas, sob o título
‘vaca atolada’. A gente lê e aprende porque vai fazer ‘vaca atolada’...”
Pois os programas de aprendizagem a que nossas crianças e adolescentes têm
de se submeter nas escolas são iguais à aprendizagem de receitas que não
vão ser feitas. Receitas aprendidas sem que se vá fazer o prato são logo
esquecidas. A memória é um escorredor de macarrão. O escorredor de macarrão
existe para deixar passar o que não vai ser usado: passa a água, fica o
macarrão. Essa é a razão por que os estudantes esquecem logo o que são
forçados a estudar. Não por falta de memória. Mas porque sua memória
funciona bem: não sei para que serve; deixo passar...
Na "Escola da Ponte" a aprendizagem acontece a partir de pratos que vão ser
preparados e comidos. Por isso as crianças aprendem e têm prazer em
aprender. Mas, e o programa? É cumprido? Pergunta tola. É o mesmo que
perguntar se a jovem casadoira aprendeu todas as receitas do "Livro de Dona
Benta"... É claro que o "Livro de Dona Benta" não é para ser aprendido.
Programas não podem ser aprendidos... São logo escorridos.
Quando visitei a "Escola da Ponte" o tema quente era a descoberta do Brasil
e tudo o mais que a cercava. As crianças estavam fascinadas com os feitos
dos navegadores seus antepassados nessa aventura, mais ousada que a viagem
dos astronautas à lua. Imagine agora que algumas crianças tenham ficado
curiosas diante do assombro tecnológico que tornou os descobrimentos
possíveis, as caravelas. Organizam-se num grupo para estudá-las. Um diretor
de escola rigoroso e cumpridor dos seus deveres torceria o nariz. "O tema
"caravelas" não consta de nenhum programa nem aqui e nem em nenhum outro lugar do mundo", ele diria. E concluiria: "Não constando de nenhum programa não deve ser objeto de estudo. Perda de tempo. Não vai cair no vestibular."
Acontece que uma caravela é um objeto no qual estão entrelaçadas as mais
variadas ciências. As caravelas são um laboratório de física. Parece que a
caravela brasileira, construída para comemorar o descobrimento, teve de
retornar ao ancoradouro, por perigo de emborcar. Um famoso vaso de guerra
sueco, o Wasa, se não me engano do século XVI, virou e afundou depois de
navegar por não mais que 400 metros. Retirado do fundo do mar há cerca de
25 anos, ele pode ser visto hoje num museu de Estocolmo. O que havia de
errado com o Wasa e a caravela brasileira? O que havia de errado tem, em
física, o nome de "centro de gravidade". O "centro de gravidade" estava no
lugar errado. O tal centro de gravidade é o que explica por que os
bonequinhos chamados “João Teimoso" não caem nunca! A regra é: para não
emborcar, o centro de gravidade do navio deve estar abaixo da linha do mar.
Essa é a razão por que os navios, freqüentemente, têm necessidade de um
lastro - um peso que faz com que o centro de gravidade se desloque para
mais baixo. "Se o centro de gravidade estiver fora do lugar, o navio vira e
afunda.
Os estudantes aprendem, em física, como parte do programa abstrato que têm
de aprender, uma regra chamada do "paralelogramo" - regra de composição de
forças. Duas forças incidindo sobre um ponto, uma delas F1, a outra F2,
cada uma numa direção diferente. Para onde se movimenta o objeto sobre o
qual incidem? Nem na direção de F1, nem na direção de F2. Diz essa regra
que o objeto vai se movimentar numa direção que se determina pela
construção de um "paralelogramo". É o que se chama de "resultante". Os
alunos aprendem a resolver o problema no papel, mas não sabem para que ele
serve na vida. E o aprendido escorre pelos furos do "escorredor de
macarrão"... Pois é essa regra que explica, teoricamente, o mistério de um
barco que navega numa direção contrária à do vento. Se o barco estivesse à
mercê do vento ele só navegaria na direção em que o vento sopra, situação
essa que tornaria a navegação impossível. Quem se aventuraria a navegar num
barco que só navega na direção do vento e não na direção que se deseja? Mas
os navegadores descobriram que, com o auxílio de uma outra força, de
direção distinta da direção do vento, é possível fazer com que o barco
navegue na direção que se deseja. E é essa a função do leme. O leme, pela
resistência da água, cria uma outra força que, colocada no ângulo adequado,
produz a direção de navegação desejada. Os alunos aprenderiam melhor se, ao
invés de gráficos geométricos, eles fosse instruídos na arte da navegação.
Da física passamos à história, a influência de Veneza, dominadora do
Mediterrâneo com seus barcos, sobre a tecnologia lusitana de construção de
caravelas. Da história para a astronomia, a ciência da orientação pelas
estrelas. O astrolábio. A bússola. Daí, para esses assombros simbólicos
chamados mapas - que só fazem sentido para o navegador se ele conhecer a
arte de se orientar, a direção do norte, mesmo quando nada pode ser visto,
a não ser o oceano que o cerca por todos os lados. (Olhando para a lua, de
noite, você é capaz de dizer a direção do sol?). Dos mapas para a
literatura, a "Carta de Pero Vaz de Caminha", a poesia de Camões, a poesia
de Fernando Pessoa: "Ó mar salgado, quando do seu sal são lágrimas de
Portugal! Por te cruzarmos quantas mães choraram, quantos filhos em vão
rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Quem quer passar
além do Bojador tem de passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo
deu, mas nele é que espelhou o céu."
Aceitemos um fato simples: um programa cumprido, dado pelo professor do
princípio ao fim, é só cumprido formalmente. Programa cumprido não é
programa aprendido " mesmo que os alunos tenham passado nos exames. Os
exames são feitos enquanto a água ainda não acabou de se escoar pelo
escorredor de macarrão. Esse é o destino de toda ciência que não é
aprendida a partir da experiência: o esquecimento.
Quanto à ciência que se aprende a partir da vida, ela não é esquecida
nunca. A vida é o único programa que merece ser seguido.
A Escola da Ponte - 5
Imagino que você, que procura minhas crônicas aos domingos, deve estar
cansado. Pois este é o quinto domingo em que falo sobre a mesma coisa.
Pessoas que falam sempre sobre as mesmas coisas são chatas. Além do que
essa insistência em uma coisa só é contrária ao estilo de crônicas.
Crônicas, para serem gostosas, devem refletir a imensa variedade da vida.
Um cronista é um fotógrafo. Ele fotografa com palavras. Crônicas são
dádivas aos olhos. Ele deseja que os leitores vejam a mesma coisa que ele
viu. Se normalmente não sou chato, deve haver alguma razão para essa
insistência em fotografar uma mesma coisa. Quem fotografa um mesmo objeto
repetidas vezes deve estar apaixonado. Comporta-se como os fotógrafos de
modelos, clic, clic, clic, clic, clic...: dezenas, centenas de fotos, cada
uma numa pose diferente! Um dos meus pintores favoritos é Monet. Pois ele
fez essa coisa insólita: pintou um monte de feno muitas vezes. E o curioso
é que ele nem mudou de lugar, não procurou ângulos diferentes. Ficou
assentado no seu banquinho, cavalete no mesmo lugar, e foi pintando,
pintando. Porque, na verdade, o que ele estava pintando não era o monte de
feno, uma coisa banal, de gosto bovino. O que ele estava pintando era a
luz. Ele só usou o monte de feno como espelho onde a luz aparecia
refletida, não como uma coisa fixa, mas como uma coisa móvel. A série de
telas do monte de feno bem que poderia chamar-se "Strip tease da luz":
devagar, bem devagar, ela vai se desnudando...
Pois estou fazendo com as minhas crônicas o que Monet fez: ele, diante do
monte de feno; eu, diante de uma pequena escola por que me apaixonei --
pois ela é a escola com que sempre sonhei sem ter sido capaz de desenhar.
Nunca fui professor primário. Fui professor universitário. O Vinícius,
descrevendo a bicharada saindo da Arca de Noé, disse: "Os fortes vão na
frente tendo a cabeça erguida e os fracos, humildemente, vão atrás, como na
vida..." Pois é exatamente assim que acontece na Arca de Noé dos
professores: os professores universitários vão na frente tendo a cabeça
erguida, e os primários, humildemente, vão atrás, como na vida... Professor
universitário é doutor, cientista, pesquisador, publica em revistas
internacionais artigos em inglês sobre coisas complicadas que ninguém mais
sabe e são procurados como assessores de governo e de empresas. Professor
primário é professor de 3ª classe, não precisa nem ter mestrado nem falar
inglês, dá aulas para crianças sobre coisas corriqueiras que todo mundo
sabe. Crianças -- essas coisinhas insignificantes, que ainda não são...
Haverá atividade mais obscura? Professores universitários gostam das luzes
do palco. Professores primários vivem na sombra...
Quando entrei na universidade para ser professor senti-me muito importante.
Com o passar do tempo fui sendo invadido por uma grande desilusão -- tédio
--, um cansaço diante da farsa. Partilhei da desilusão dos alunos que se
sentiram muito importantes quando passaram no vestibular e até ficaram
felizes quando os veteranos lhes rasparam o cabelo. Cabelo raspado é
distintivo: "Passei! Passei!" Não levou muito tempo para que descobrissem
que a universidade nada tinha que ver com os seus sonhos. E essa é a razão
por que fazem tanta festa e foguetório quando tiram o diploma. Fim do
sofrimento sem sentido.
A velhice me abriu os olhos. Quando se chega no topo, quando não há mais
degraus para subir, a gente começa a ver com uma clareza que não tinha
antes. "Tenho a lucidez de quem está para morrer", dizia Fernando Pessoa na
"Tabacaria". Fiquei lúcido! E o que vi com clareza foi o mesmo que viu
Joseph Knecht, o personagem central do livro de Hesse “O jogo das contas de
vidro”: depois de chegar no topo, percebeu o equívoco. E surgiu, então, o
seu grande desejo: ensinar uma criança, uma única criança que ainda não
tivesse sido deformada (essa é a palavra usada por Hesse) pela escola.
Também eu: quero voltar para as crianças. A razão? Por elas mesmas. É bom
estar com elas. Crianças têm um olhar encantado. Visitando uma reserva
florestal no estado do Espírito Santo, a bióloga encarregado do programa de
educação ambiental me disse que é fácil lidar com as crianças. Os olhos
delas se encantam com tudo: as formas das sementes, as plantas, as flores,
os bichos. Tudo, para elas, é motivo de assombro. E acrescentou: "Com os
adolescentes é diferente. Eles não têm os olhos para as coisas. Eles só têm
olhos para eles mesmos..." Eu já tinha percebido isso. Os adolescentes já
aprenderam a triste lição que se ensina diariamente nas escolas: Aprender é
chato. O mundo é chato. Os professores são chatos. Aprender, só sob ameaça
de não passar no vestibular.
Por isso quero ensinar as crianças. Elas ainda têm olhos encantados. Seus
olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do
pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Tudo é espantoso:
um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxo, uma concha de caramujo, o vôo dos urubus, o zunir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos,
uma pipa no céu, um pião na terra. Dessas coisas, invisíveis aos eruditos
olhos dos professores universitários (eles não podem ver, coitados; a
especialização tornou-os cegos como toupeiras, só vêem dentro do espaço
escuro de suas rocas -- e como vêem bem!), nasce o espanto diante da vida;
desse espanto, a curiosidade; da curiosidade, a fuçação (essa palavra não
está no Aurélio) chamada pesquisa; dessa fuçação, o conhecimento; e do
conhecimento, a alegria!
Pensamos que as coisas a serem aprendidas são aquelas que constam dos
programas. Essa é a razão por que os professores devem preparar seus planos
de aula. Mas as coisas mais importantes não são ensinadas por meio de aulas
bem preparadas. Elas são ensinadas inconscientemente. Bom seria que os
educadores lessem ruminativamente (também não se encontra no Aurélio) o
Roland Barthes. Ele descreveu o seu ideal de aula como sendo a criação de
um espaço -- isso mesmo! Um espaço! -- parecido com aquele que existe
quando uma criança brinca ao redor da mãe. A criança pega um botão leva
para a mãe. A mãe ri, e faz um corrupio (você sabe o que é um corrupio?).
Pega um pedaço de barbante. Leva para a mãe. A mãe ri e lhe ensinar a fazer
nós. Ele conclui que o importante não é nem o botão nem o barbante, mas
esse espaço lúdico que se ensina sem que se fale sobre ele.
Na Escola da Ponte o mais importante que se ensina é esse espaço. Nas
nossas escolas: salas separadas -- o que se ensina é que a vida é cheia de
espaços estanques; turmas separadas e hierarquizadas -- o que se ensina é
que a vida é feita de grupos sociais separados, uns em cima dos outros.
Conseqüência prática: a competição entre as turmas, competição que chega à
violência (os trotes!). Saberes ministrados em tempos definidos, um após o
outro: o que se ensina é que os saberes são compartimentos estanques (e
depois reclamam que os alunos não conseguem integrar o conhecimento. Apelam
então para a "transdisciplinaridade", para corrigir o estrago feito. O que
me faz lembrar um filme de O Gordo e o Magro. Ainda falo sobre o tal filme,
Queijo Suíço...). Ah! Uma vez cometido o erro arquitetônico, o espírito da
escola já está determinado! Mas nem arquitetos nem técnicos da educação
sabem disso...
Escola da Ponte: um único espaço, partilhado por todos, sem separação por
turmas, sem campainhas anunciando o fim de uma disciplina e o início da
outra. A lição social: todos partilhamos de um mesmo mundo. Pequenos e
grandes são companheiros numa mesma aventura. Todos se ajudam. Não há
competição. Há cooperação. Ao ritmo da vida: os saberes da vida não seguem
programas. É preciso ouvir os "miúdos", para saber o que eles sentem e
pensam. É preciso ouvir os "graúdos", para saber o que eles sentem e
pensam. São as crianças que estabelecem as regras de convivência: a
necessidade do silêncio, do trabalho não perturbado, de se ouvir música
enquanto trabalham. São as crianças que estabelecem os mecanismos para
lidar com aqueles que se recusam a obedecer às regras. Pois o espaço da
escola tem de ser como o espaço do jogo: o jogo, para ser divertido e fazer
sentido, tem de ter regras. Já imaginaram um jogo de vôlei em que cada
jogador pode fazer o que quiser? A vida social depende de que cada um abra
mão da sua vontade, naquilo em que ela se choca com a vontade coletiva. E
assim vão as crianças aprendendo as regras da convivência democrática, sem
que elas constem de um programa...
Minha cabeça está coçando com o sonho de fazer uma escola parecida... Você
matricularia seu filho numa escola assim? Mande sua resposta com suas
razões para rubem@correionet.com.br -- estou curioso! Mas, para fazer essa
escola, tenho de resolver primeiro um problema: como é que o graxo coloca o
primeiro graveto para construir o seu ninho?
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