domingo, 15 de abril de 2012

Quando a ideologia é mais importante do que a técnica

Empresas, entidades e igrejas que 'vendem' uma filosofia ou crença optam por contratar profissionais que sigam seus ideais

11 de março de 2012 | 3h 15

MÁRCIA RODRIGUES - O Estado de S.Paulo
Os candidatos a uma vaga de emprego começam a se deparar com mais uma exigência do mercado de trabalho: a contratação ideológica. Algumas empresas, entidades e igrejas optam por selecionar profissionais que sigam a sua filosofia ou linha religiosa. A exigência vem sendo aceita pela Justiça do Trabalho, que não considera essa triagem uma discriminação ou assédio moral. Entre os exemplos estão Vigilantes do Peso, Igreja Adventista do Sétimo Dia e Greenpeace, que expõe a "identificação com seus objetivos e de sustentação dos seus valores" como uma das exigências para a contratação.
A regra não vale para todos os funcionários, mas para aqueles que são "a linha de frente da companhia". "Se a empresa vende um conceito ou uma filosofia, ela pode exigir que os funcionários que exercerão a atividade que estará diretamente ligada ao seu negócio sigam seus preceitos", afirma a advogada trabalhista Adriana Calvo.
Segundo ela, essas "empresas de conceito", como são chamadas no meio jurídico, excepcionalmente, podem fazer exigências conforme a sua atividade. "É um entendimento novo, mas muito discutido, principalmente em aulas de mestrado e doutorado", conta.
Os funcionários dessas empresas apoiam a conduta. Antes de começar a trabalhar como orientadora no Vigilantes do Peso, Adela Martin, de 55 anos, passou pelo programa de emagrecimento da companhia e conseguiu perder 10 quilos. Essa é uma das exigências para quem deseja assumir essa função na empresa, como é considera juridicamente a entidade. "Achamos que é uma boa forma de contratar as orientadoras. Afinal, quem poderia incentivar outra pessoa a seguir o programa do que alguém que teve resultado", afirma a gerente nacional do Vigilantes, Fernanda Fernandes.
Na entidade, todas os orientadores assinam um contrato de trabalho em que uma das cláusulas exige que elas mantenham o peso. Essa prescrição contratual já resultou na demissão por justa causa de uma funcionária. O caso está em análise no Tribunal Superior do Trabalho (veja nesta página).
No caso de Adela, a exigência de manter a forma não é algo que a assusta. "Gosto do que faço, tenho uma remuneração razoável pelo que se vê no mercado e manter o peso, para mim, é mais uma realização pessoal do que uma exigência contratual", diz.
Opinião semelhante tem o vice-diretor da unidade da escola do Brooklin da Igreja Adventista do Sétimo Dia, José Carlos Lira, de 33 anos. "Não me imagino trabalhando em um ambiente onde as pessoas não seguem a mesma ideologia. Meu corpo é o templo do Espírito Santo. Se eu sei que não posso beber ou fumar, conviver com um colega que prega isso não me fará bem."
Segundo o diretor de comunicação da sede da igreja, pastor Valter Araujo, nem todos os funcionários da congregação seguem sua doutrina. "Somente os que atuam diretamente com funções que remetem aos nossos princípios são adventistas."
Para a diretora da consultoria Ascend, Andrea de Paula Santos, apesar desse conceito ser novo, é natural que as empresas busquem pessoas que se alinhem aos seus ideais. "O mercado já faz uma seleção de profissionais que tenham empatia com os seus ideais. Normalmente, o questionamento das empresas é mais sutil e não entra nos detalhes que as empresas de tendência podem transitar. Não há perguntas ideológicas, mas existe uma triagem com o foco no perfil do candidato que a empresa realmente deseja", conta.
Opinião semelhante tem o sócio-fundador da Alliance Coaching, Pablo Aversa. Ele acredita que toda organização acaba fazendo uma seleção de candidatos que tenham conexão com ela. "E é recomendado que o candidato também tenha em mente o que espera daquela empresa para não se decepcionar. Afinal, desde a seleção as empresas planejam o futuro do profissional."
Tanto Aversa quanto a presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), Leyla Nascimento, acreditam que o profissional jamais deve mentir que aprova a ideologia da empresa quando, na verdade, tem crenças bem diferentes para garantir a vaga. "A transparência no momento da dinâmica e da entrevista é essencial para a carreira do candidato e para a empresa. Afinal, um profissional infeliz não trará o resultado que a empresa esperava. E isso pode decepcionar as duas partes", diz.
Para Leyla, mentir em uma entrevista para conseguir o emprego, pode trazer problemas futuros para o profissional. "Ele será tachado no mercado como omisso. É o famoso 'profissional da entrevista', como esse tipo de candidato é considerado no meio de RH. E isso pode comprometer a sua carreira", ressalta.
Profissional foi demitida por engordar 20 quilos
Uma das primeiras decisões sobre as empresas de conceito está sendo analisada na Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST). A corte começou a julgar, no mês passado, o recurso de um processo de uma ex-orientadora da Vigilantes do Peso, demitida por justa causa por indisciplina porque engordou 20 quilos.
Entre os pontos em discussão estão a razoabilidade ou abuso da cláusula contratual que previa advertências e demissão, se o peso ideal fosse excedido; e discriminação, insubordinação ou impossibilidade de a funcionária cumprir a determinação de não engordar.
O julgamento foi interrompido por pedido de vista do presidente da Turma, ministro Renato de Lacerda Paiva, quando a votação estava empatada.
O relator do processo, ministro Guilherme Caputo Bastos, votou contra a ex-empregada. Segundo ele, apesar das diversas advertências da empresa, a trabalhadora descumpriu a cláusula contratual de manutenção do peso ideal, caracterizando-se, assim, o ato de indisciplina e insubordinação a possibilitar a dispensa por justa causa. Para o relator, a empresa, ao ter como orientadora uma pessoa fora dos padrões exigidos, estaria "trabalhando contra si própria".
O ministro José Roberto Freire Pimenta, porém, abriu divergência. Para ele, a cláusula é abusiva e fere os direitos fundamentais da pessoa, pois não é razoável nem possível obrigar alguém a se comprometer a não engordar. Para o ministro, não foi provado que a trabalhadora descumpriu conscientemente a cláusula. "Essa empregada engordou porque quis?", argumentou.

Filosofia da companhia deve ficar clara
Adriana Calvo, advogada trabalhista para O Estado de S.Paulo
O que é uma empresa de tendência?
É uma empresa que, diferentemente das demais, pode invadir a intimidade e a privacidade do profissional. O motivo é que ela tem uma atividade bem clara e com princípios religiosos ou ideológicos evidentes. Seu negócio está diretamente ligado a sua doutrina. Então, ela pode questionar, nos seus processos seletivos, aspectos relacionados a sua doutrina. E, com base nas respostas, pode optar ou não pela contratação desse profissional. Também pode exigir uma postura do empregado no exercício da função. Um exemplo é a cobrança que o Vigilantes do Peso faz com suas orientadoras para manterem o peso. Isso está diretamente ligado à doutrina da empresa, por isso não é classificado como abuso.
O conceito é novo?
Sim. Temos pouca jurisprudência. A mais conhecida é a do Vigilantes do Peso (veja acima) que está sendo julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). Acompanho o assunto porque sou professora de mestrado e o meio acadêmico vem discutindo o tema. Mas poucos advogados o conhecem.
Quando a seleção pode caracterizar assédio moral?
Para caracterizar uma empresa de tendência, o questionamento deve estar diretamente ligado ao objeto social da empresa. Uma companhia ou entidade que não tem motivo para exigir que os funcionários da linha de produção de uma fábrica siga um regime como o do Vigilantes do Peso, por exemplo, pode estar infringindo os direitos fundamentais do cidadão. Mas se essa linha necessita de funcionários com mais condicionamento físico por causa do peso que deverão carregar, não é considerado abuso.
O trabalhador pode omitir informações na entrevista?
No direito espanhol está assegurada a omissão no caso de o trabalhador se sentir constrangido com uma pergunta discriminatória. No Brasil, a possibilidade está prevista na Constituição Federal, que proíbe qualquer tipo de discriminação, seja na seleção, durante ou após o contrato de trabalho. Se perguntarem ao candidato se ele é homossexual e esta opção não estiver diretamente ligada à vaga, por exemplo, ele pode mentir. Quando não há ligação é discriminação. Agora, no caso das empresas de tendência, é possível fazer perguntas relativas a sua filosofia e, caso o empregado não compartilhe das suas ideias, elas podem não contratá-lo. Se estão buscando um profissional para atuar em uma entidade de defesa do movimento gay e o candidato critica os homossexuais, ele pode ser recusado.
Como o funcionário pode identificar se está sendo questionado sobre seguir uma filosofia ou se está sofrendo assédio?
É aí que entra a boa-fé objetiva e a ética profissional. No início da entrevista a empresa precisa deixar clara sua filosofia ou doutrina religiosa. No caso do Greenpeace, por exemplo, ele pode questionar o candidato sobre o que pensa da defesa do meio ambiente.
Fontes: 



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