domingo, 17 de outubro de 2010

PLAYBACK THEATRE: TEATRO ARTE, ESPONTÂNEO E TERAPÊUTICO

PLAYBACK THEATRE: TEATRO ARTE, ESPONTÂNEO E TERAPÊUTICO
Zoé Margarida Chaves Vale
SINOPSE
A autora propõe o Playback Theatre como um espaço de confluência de três formas de teatro : de arte, espontâneo e terapêutico. Mostra como as funções teatrais de comunicação estética, compreensão, participação e transformação se manifestam em vários períodos históricos da representação dramática, no Teatro da Espontaneidade de Moreno, no Teatro Espontâneo atual e no Playback Theatre. Apresenta o relato de uma apresentação de Playback Theatre e revela como a prática deste tem contribuído para a revitalização dos recursos teatrais em outras áreas de aplicação do Psicodrama.
UNITERMOS
Teatro. Representação dramática. Teatro da Espontaneidade. Playback Theatre. Teatro Espontâneo. Catarse ativa. Catarse passiva.
“ ‘No princípio era o verbo’ , dizia João nos Evangelhos. ‘No princípio era o feito’, exclamava o Fausto de Goethe. Avancemos mais. ‘No princípio era aquele que fazia, o ator; no princípío era eu, o Criador do Universo’ ” ( Moreno ).
ABAIXO AS SEÇÕES 3 (para melhor compreensão do que é playback theatre, suas origens, objetivos, etc) e 4 ( Relato de um espetáculo no Teatro Alterosa, Belo Horizonte, 13h30 min de 23 de novembro de 1999, no VI Encontro de Recursos Humanos, para cerca de duzentos participantes).
3. TEATRO ESPONTÂNEO E PLAYBACK THEATRE:
“ Fazer Teatro Espontâneo é uma aventura na corda bamba, a reinação do equilibrismo, olhar o mundo do alto sabendo que, ao menor descuido, se pode despencar. Por isso mesmo, o Teatro Espontâneo continua sendo uma paixão” ( Moysés Aguiar )
Desde sua origem até os dias de hoje, passando por mudanças conforme evolução do pensar mágico ao mítico e deste ao ideológico, a representação dramática continua sendo, segundo Menegazzo (4, 59 ) “um ofício ou uma arte temporal-espacial que apresenta ações com a faculdade intrínseca de interessar e comover, de mobilizar afetos, de elucidar ( o mistério humano) e produzir no homem determinadas modificações.”
Os instrumentos essenciais de uma representação dramática continuam sendo a mensagem, o ator/atores e o público ( mais ou menos participativo, mas sempre com a função de “caixa de ressonância afetiva”) e a lei dramatúrgica do “como se” ( tudo que ocorre no espaço-tempo da dramatização é ficcão ou simulação). Este espaço-tempo, concretizado por um palco, um tablado, uma área circular central ou um “canto” demarcado, apresenta, segundo Boal ( 2.2., 32-36 ) além das três dimensões objetivas- comprimento, largura e altura- mais duas dimensões subjetivas- afetiva e onírica, proporcionadas pela memória ( retrospectiva) e pela imaginação ( prospectiva). A primeira atua como um poderoso telescópio, que aproxima o passado “lá-e-então” e a outra opera como um poderoso microscópio, que amplifica, maximiza e re-significa cada gesto, cada movimento , cada palavra.
O Teatro Espontâneo teve sua origem no Teatro Vienense da Espontaneidade; é uma forma de teatro do momento, que propõe investigar o comportamento humano por meio da criação artística in statu nascendi. A estética do Teatro Espontâneo é interativa em vez de contemplativa; a catarse é ativa em vez de passiva. Aguiar propõe que seja o Teatro Espontâneo considerado a raiz do Psicodrama e do Sociodrama ( 1 , 25 ) .,Segundo ele, o teatro espontâneo contemporâneo utiliza o protagonista como eixo da produção dramática, envolvendo simultaneamente todo o grupo . Atualmente há nove modalidades principais de Teatro Espontâneo mais praticadas. Oriundas do teatro legítimo : teatro do oprimido, dramaterapia , peça didática e playback theatre; tendo o Teatro da Espontaneidade de Moreno como matriz : teatro espontâneo “matricial”, role-playing, jornal vivo, axiodrama, e multiplicação dramática.
O teatro, dissemos acima, tem, de forma geral, as funções de participação, comunicação estética , compreensão e transformação. O Teatro Espontâneo, por ser interativo e fruto de co-criação, cumpre , de forma específica, segundo Aguiar ( 1, 39-44 ), as funções socioanalítica, socioterápica, educativa e psicoterápica, que podemos detalhar nos seguintes objetivos: 1º liberação e expansão do potencial espontâneo –criativo, nos níveis individual e coletivo; 2º desenvolvimento do espírito de grupo / equipe – por ser uma interação face a face intensa que exige dos atores solidariedade, disponibilidade, generosidade e harmonia interpessoal; 3º catarse de integração, intrapessoal e intragrupo, auto-consciência e reorganização de papéis sociais e psicológicos ; 4º desvelamento do co-consciente e do co-inconsciente grupal ( conceitos de Moreno ) , fazendo emergir múltiplos sentidos do grupo, no aqui e agora; 5º produção de novos sentidos para o grupo e seus membros. .
Boal ( 2.2. , 27-42), ao comentar o sentido terapêutico do Teatro do Oprimido, lembra que a palavra psique, seja em grego, inglês ou francês, designa não só “ o conjunto de fenômenos psíquicos que formam a unidade pessoal, como também um objeto, um espelho no qual uma pessoa, em pé, pode ver-se por inteiro, ou seja, na psique o espectador ( spect-ator) vê sua psique, vê-se a si mesmo no outro”. E cita Shakespeare, “O teatro é um espelho onde se reflete a natureza!”.
A partir dos anos 90 têm surgido cada vez mais grupos que se dedicam preferencialmente à prática e pesquisa do Teatro Espontâneo, seja o matricial seja outras modalidades , como a multiplicação dramática, o teatro do oprimido e o playback theatre. Este movimento contemporâneo mantém viva a raiz teatral do Psicodrama, resgatando suas vertentes catártica e estética.
O playback theatre foi criado por Jonathan Fox e Jo Salas, nos E.U.A, em 75. O primeiro grupo a praticar esta modalidade no Brasil foi o “Grupo Reprise de São Paulo”. Atualmente ( ano 2000 ) há várias “trupes teatrais” praticando sistematicamente o playback theatre no país, entre elas , a “Cia. São Paulo Playback Theatre” e o “Vida-em-Cena – Grupo de Teatro Espontâneo da SOBRAP-BH”.
Caracteriza-se por ter um grupo fixo de atores ( profissionais e/ou psicodramatistas) que interpreta , de improviso, histórias e fatos contados por pessoas da platéia. No playback theatre, diferentemente do teatro espontâneo matricial, há clara distinção dos papéis de direção, atores, platéia e o emergente grupal atua como “narrador”, não representando ele mesmo o seu drama no palco. Pode-se incluir outros papéis como músico e iluminador.
Nesta modalidade de teatro, há três lugares dramáticos: o lugar de onde se representa- o palco; o lugar de onde se vê após contribuir com o texto – a platéia; e o terceiro lugar, entre o público e o palco, reservado ao narrador. Quando alguém da platéia “presenteia” o público com uma história de sua vida, ele é convidado pela direção a sentar-se perto do palco . Após contar sua história, que a direção transforma em texto teatral, com cenas e personagens, o narrador assiste, de perto, a versão dramatizada pelos atores. De modo geral é uma experiência marcante, comovente e catártica. Ele recebe de presente a sua história transformada em arte .Temos aqui a integração das vertentes estética, ética e catártica do Teatro Espontâneo. O narrador vive uma situação dicotomizante ( no sentido de verso/reverso, não de oposição): é ao mesmo tempo um eu-antes, personagem que viveu a cena e um eu-agora, que a conta.
Há dois pressupostos básicos: 1º Ao ver sua história representada e reinventada no palco, o narrador amplia seu sentido inicial, o que se torna terapêutico , por permitir uma nova visão do mesmo fato; o sujeito- narrador projeta no palco suas lembranças e observa ali fatos acontecidos ou desejados ( dimensão afetiva) e os penetra, “atravessa o espelho”, com ele se funde e sonha ( dimensão onírica ). 2º As histórias narradas e encenadas no mesmo espetáculo “ vão se encadeando, conversando uma com a outra e dando uma solução para aquele grupo, naquele momento” ( 4 ) com seus conflitos, temores, valores e peculiaridades sociométricas - ou seja, o seu co-consciente e o seu co-inconsciente , daí ser um método sociátrico.
Quanto à sua aplicabilidade – além do prazer estético , o “Vida-em-cena” tem realizado o playback theatre com as seguintes finalidades: desenvolvimento pessoal; diagnóstico de um grupo – institucional, empresarial, comunitário, profissional ; introdução de programas de desenvolvimento e de mudanças; integração e reflexão de temas específicos.
4- RELATO DE UMA APRESENTAÇÃO DE ‘PLAYBACK THEATRE”
“ O público nos presenteia com sua história e nós a devolvemos em forma de arte” ( Antonio Ferrara).
Teatro Alterosa, Belo Horizonte, 13h30 min de 23 de novembro de 1999. O “Vida-em-cena: Grupo de Teatro Espontâneo da SOBRAP-BH” , inicia o Playback Theatre no VI Encontro de Recursos Humanos, para cerca de duzentos participantes.
O tema geral, escolhido pela Associação Brasileira de Treinamento e Desenvolvimento-MG e pela Coluna de Recursos Humanos do Jornal Estado de Minas é “Novos tempos, novos valores – potencializando a força humana e empresarial”.
Diretora, seis atores e dois músicos se apresentam com expressão corporal e verbal, trazendo como estão neste momento, aqui e agora. A diretora fala dos objetivos do playback theatre: é uma modalidade de teatro, onde um elenco fixo de atores transformam fatos, emoções e histórias da platéia em imagens, movimentos , cenas, imediatamente após serem narradas e sem ensaio prévio. O princípio básico é de co-criação espontânea entre participantes, atores e músicos, mediados pela direção.
Iniciando a primeira fase , de aquecimento, a diretora estimula os participantes a expressarem os sentimentos daquele momento. À medida que um membro da platéia revela seu sentimento, os atores o transformam em “esculturas fluidas”, expressando-o com todo o corpo , com mímica e sons e fala curta, imediatamente após sua comunicação. Sentimentos revelados e representados: curiosidade, estranheza, ansiedade, receio de não dar certo.
Reforçando a co-responsabilidade e compromisso de todos para o sucesso do espetáculo, a diretora introduz a segunda etapa, a mais significativa, da dramatização de histórias contadas ao vivo pelo público. Três homens – apesar da maioria do público ser de mulheres – aceitam o desafio e sobem ao palco, em momentos separados, para relatar um fato de suas vidas .
A primeira história neste espetáculo foi sobre a rivalidade entre dois profissionais de Recursos Humanos , marido e mulher trabalhando em firmas concorrentes; discutem em casa sobre o trabalho, ele acha que o casamento não irá durar muito tempo, apesar de gostar muito de sua família, que inclui a sogra e duas filhas. A segunda história, “ a verdade que não deu certo”, fala de um funcionário, maquinista de trem, atualmente profissional de Recursos Humanos , que foi demitido pelo chefe ao reconhecer a sua parcela de culpa numa colisão de dois trens. O acidente foi provocado por ter recebido informações erradas do setor de controle. Ele guardou muita mágoa e ressentimento do chefe que o demitiu, por não ter levado em conta sua sinceridade e por não ter punido o outro envolvido no acidente. A terceira história, “a mentira que deu certo”, foi uma situação muito engraçada de dois amigos que, após uma festa , meio bêbados, se envolveram com duas mulheres a quem deram carona e depois bateram o carro; a mulher de um destes, amigo do narrador, ficou muito zangada. O narrador inventou uma mentira ao amigo: “sua mulher jurou capá-lo com um facão se você ‘aprontar’ novamente”. Na cena mais divertida, o amigo se levanta no meio da noite, após ouvir uns ruídos, e encontra a sua mulher com um facão - ela se levantara antes dele, assustada com um barulho no quintal , e procurou se proteger contra um provável ladrão. O amigo fica apavorado, se ajoelha perante a esposa e promete ser-lhe sempre fiel. E fizeram as pazes. O narrador acrescenta que nunca contara a verdade( ou seja, que inventara a ameaça ) para o amigo e sua esposa.
Após contar sua história , a diretora pede que o narrador escolha os atores para os papéis principais, incluindo o dele próprio. Os atores se caracterizam rapidamente, à vista do público, utilizando recursos do camarim, colocado estrategicamente no fundo do palco. Enquanto o elenco se prepara e se aquece internamente para o desempenho dos papéis , os músicos tocam e cantam músicas relacionadas à história; estas canções também emergem de improviso , de acordo com a sensibilidade e intuição dos músicos, e são oferecidas como presente ao narrador. Geralmente é neste momento que este começa a ficar emocionado, percebendo que ali tem uma mensagem para ele. Tudo é surpresa para todos, inclusive para a diretora e os atores. No momento da representação a diretora não interfere; assiste, ao lado do narrador.
A beleza estética e a riqueza simbólica das cenas vão depender da espontaneidade, criatividade e sintonia do grupo. Cada um, em sua função específica, contribui para o espetáculo “dar certo”. A direção aquece o público, entrevista o narrador, oferece-lhe apoio sócio-emocional e “garimpa” de sua exposição o que é fundamental e o transforma em cenas, que são repassadas aos atores; e estes as recriam e representam. “São todos atores em cena, todos dependem uns dos outros, a equipe inteira vai à ação. Ora o foco está na direção, ora no narrador, ora nos atores, ora nos músicos. A sintonia entre os focos é a grande sacada” ( 4 ).
Às 14h30m inicia-se a terceira e última etapa do playback theatre, do compartilhamento e encerramento. A diretora pede que o público comunique os sentimentos que tem agora. De novo os atores expressam com “esculturas fluidas” os sentimentos de surpresa, admiração, alívio, gratidão, respeito, crença no ser humano e na sua incrível capacidade de criar e certeza de que a resposta para os “novos tempos” está dentro de nós, no resgate da espontaneidade criadora. A diretora encerra convidando a uma reflexão: - “qual foi a grande história contada aqui, hoje, por este grupo de profissionais de Recursos Humanos ? Que significados têm, para este grupo, “as verdades que nem sempre dão certo” ( segunda história) e “as mentiras que dão certo” ( terceira história )? Em todas as histórias foram evidenciadas as relações familiares, as relações afetivas e interpessoais. Continuam sendo os valores a serem preservados nestes novos tempos?”.
Alguns profissionais presentes ressaltaram que “só o desenvolvimento da espontaneidade e da criatividade do ser humano pode garantir a sua sobrevivência nestes novos e instáveis tempos”.
Vários participantes do VI Encontro de Recurso Humanos perguntaram ao grupo “Vida-em-cena” , no intervalo, como é possível atuar assim, de improviso. O terceiro narrador revelou que fêz questão de subir ao palco por ter acreditado que tudo era , de fato, fruto de ensaio prévio ( ou seja, uma grande mentira da trupe ...). Ficou surpreso com o resultado, ou seja com a representação “da sua mentira que deu certo”. O segundo narrador fêz questão de agradecer posteriormente aos atores – confessou ter se sentido aliviado e com melhor compreensão global do fato, “ a verdade que não deu certo”. O primeiro narrador contou ter “inventado” ( mais uma mentira... ) parte da história.
Não importa que os casos sejam imaginários ou reais. Sempre há uma escolha “real” do sujeito, que tem a ver com ele e o grupo todo naquele exato momento, assim como sempre há um tanto de fantasia no relato de casos reais. “Em teatro até mentira é verdade. No palco é difícil esconder. Quase impossível” ( 2.2., 38 e 41 ). O diretor, o músico e os atores acrescentam sua fantasia à história e é por isto que conflitos, dificuldades e peripécias do cotidiano são recriados, reinventados, dramatizados e desdramatizados . Esta é a magia do playback theatre, este trânsito sutil entre fantasia e realidade, entre passado, presente e futuro, entre o cômico e o trágico, entre o “eu” , “eles” e “nós”.

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